“Imagine um lugar seguro”: o trabalho de uma psicóloga com crianças refugiadas

Na Jordânia, MSF atende famílias que estão tentando reconstruir suas vidas. A psicóloga tcheca Kateřina Šrahůlková fala sobre seu trabalho no país

"Imagine um lugar seguro": o trabalho de uma psicóloga com crianças refugiadas

Na Jordânia, as pessoas costumam trabalhar de domingo a quinta-feira. Sexta e sábado são dias de fim de semana. Nós atendemos muitos pacientes todos os dias. Quero falar sobre alguns deles. Não mencionarei nenhum nome ou detalhes particulares para proteger a privacidade sua privacidade.

Domingo
Uma menina de 15 anos de idade chega junto com a mãe. Ela sofreu queimaduras graves no rosto e em uma parte do corpo durante a guerra. Depois que foi ferida, ela teve que ficar em casa esperando alguém chegar para ajudá-la. A família não tem dinheiro para a cirurgia plástica. Eles me dizem que, por causa do rosto queimado, essa menina provavelmente nunca vai casar e ter filhos.

A garota é extremamente tímida, recatada e tensa. Ela quase não reage, usa expressões faciais mínimas. Ela fica muito ansiosa no início de nossas sessões.

Aqui na Jordânia eu trabalho com um intérprete, mas isso seria difícil mesmo em tcheco.

De acordo com as anotações, a própria menina não sente nenhum problema, não quer falar sobre nada, mas seu estado parece ser muito dramático. Sua mãe diz que ela chora o tempo todo.

Nos primeiros 15 minutos, suo como se estivesse correndo uma maratona. Eu desesperadamente me apego à informação mínima que tenho e a menina começa a responder. No final da sessão, ela começa a responder minhas perguntas gentis, usando algumas palavras, não apenas balançando a cabeça.

Ela até sorri um pouco.

Segunda-feira
Esta é a primeira vez que o pai desta família vem a uma sessão com sua esposa e seu filho. O menino tem 13 anos de idade, sua mãe diz. O menino não sabe a própria idade. Ele está sorrindo para mim.

O pai conta sobre os dois anos em que se escondem do conflito em seu país, sobre a constante mudança de casa, sobre o medo e a desesperança e sobre o esforço para proteger os filhos.

É óbvio que ele está imensamente exausto, posso ver em seus olhos o terror que ele sofreu. Isso me faz tremer.

Eles estão na Jordânia há quatro anos. O garoto diz que tem medo às vezes, mas os pais dizem que ele sente medo o tempo todo. Durante muito tempo, o menino teve medo de ir à escola, até mesmo de sair de casa.

Ele ainda tem medo de dormir no escuro. Tem pesadelos. Ele conta que trabalha em plantações desde os 12 anos, para ajudar sua família a ganhar algum dinheiro. Sua mãe diz que alguém tentou estuprá-lo no trabalho. Ele conseguiu escapar.

Os pais também estão buscando ajuda psicológica para si mesmos.

Terça-feira
Eu começo a me sentir cansada. Cansada de tudo. Eu me pergunto se isso está sendo pior do que o habitual por causa das vacinas adicionais que recebi depois de chegar à Jordânia.

Recebo meu primeiro paciente jordaniano.

É uma menina. De acordo com as notas, ela provavelmente tem transtorno do espectro autista. Ela é inteligente, mas seu comportamento é incomum, especialmente em relação ao tato e ao olfato.

Ela é intimidada na escola. As crianças zombam dela, sua mãe está preocupada com o fato de a menina ser diferente, que as pessoas olhem para ela nas ruas, que ela não consiga se controlar. Ela tem vergonha. Ela sente que é um comportamento inadequado para uma garota.

É difícil explicar à mãe que alguns dos comportamentos da menina provavelmente não podem ser curados, que estão relacionados ao estresse e que, se ela for colocada sob pressão, um comportamento incomum provavelmente se transformará em outro.

A própria menina diz que seu comportamento é “insano”, mas ela não consegue se controlar. É difícil viver com autismo, mas ser autista neste cenário é algo que eu não consigo nem imaginar.

Quarta-feira
Mais alguns pais vêm para as consultas. Um entrou no meu escritório fumando um cigarro, mesmo que seja proibido. Ele é suspeito de atormentar sua ex-esposa e seu filho mais velho. Depois de muito tempo, sua atual esposa conseguiu convencê-lo a visitar nossa clínica. Eles vieram com os dois filhos.

Os meninos têm 8 e 5 anos de idade. O menino mais novo claramente tem atrasos de desenvolvimento, mas nenhuma das crianças se comunica verbalmente, nem mesmo com monossílabos. O filho mais velho costumava se comunicar, mas depois de viver com o pai por vários anos, ele parou.

O mais novo está explorando o consultório sem nenhum controle, o mais velho está sentado ansioso, tem medo de conversar mesmo quando usamos o tom mais gentil, seus movimentos são irregulares, seus olhos estão cheios de medo.

O pai nos permitirá trabalhar com a criança mais velha somente se trabalharmos com o menino mais novo também. Tudo isso foi explicado por sua esposa, mais tarde, ao telefone, não na sala de trabalho.

Quinta-feira
Estou pensando em um menino de ontem.

Ele veio aqui há duas semanas depois de um telefonema urgente. Conseguimos encaixá-lo no horário entre dois outros pacientes.

Em casa ele chorou dia e noite por uma semana. Sua mãe veio com óbvio desespero no rosto, embora eu só pudesse ver seus olhos, que estavam cheios de tristeza.

Eu conversei com o menino sobre seus medos. Ele tinha medo da morte. A visão dele morrendo continuava vindo à sua mente e ele não conseguia pensar em mais nada. Seu pai havia morrido e agora ele não conseguia se livrar da ideia de que o mesmo destino lhe esperava.
Nós falamos sobre o medo em geral, sobre a vida e a morte, sobre como a morte pode parecer, sobre sua imaginação.

Praticamos a técnica mental de um lugar seguro: imaginar um lugar seguro em sua mente, que ele mesmo possa evocar. O menino entendeu a ideia de maneira rápida e imaginativa, prometeu praticá-la. Ele pegou um lápis e um caderno (ele não tem isso em casa) e nós conversamos sobre a possibilidade de ele desenhar seus medos.

Outro domingo…
Estou acostumada a trabalhar com crianças e famílias inteiras em situações difíceis em meu país natal, a República Tcheca. Algumas histórias de vida me atingem mais do que outras. Desenvolvi mecanismos para me proteger.

Mas a consulta de hoje me impressionou mais que qualquer outra em muito tempo.

Sim, eu sei e ainda repito para mim mesma que já esperava que as histórias de vida dessas crianças e de seus pais fossem difíceis.

Hoje atendi uma mulher com uma criança. Ela disse que sofreu um aborto há dez dias. Ela estava em um estágio avançado da gravidez. Ela perdeu o bebê porque seu marido a agride violentamente. Ela está preocupada com os filhos. Além da criança, ela tem um bebê de menos de um ano de idade. Ela recusou qualquer ajuda que possamos oferecer nestes casos (chamando as autoridades, que podem intervir). Ela só queria que a atendêssemos e ao seu filho.

Eu tive outra sessão naquele dia, então, não tive tempo de processar a sessão com a mulher, mas ela voltou no caminho para Irbid. Eu queria discutir isso com minha colega, para perguntar o que podemos fazer, mas quase não consegui contar a ela sobre o caso.

Desesperança é algo que sempre me atinge com força.

 

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