Gaza: sistema mortal de distribuição de ajuda de Israel e dos EUA precisa acabar

Mais de 500 pessoas foram mortas e quase 4 mil feridas enquanto tentavam buscar alimentos

Ashraf, de 17 anos, recebe tratamento na clínica Al-Mawasi após ser baleado enquanto tentava buscar alimentos em um local de distribuição apoiado pelos EUA e por Israel em Gaza. Palestina, junho de 2025. ©Nour Alsaqqa/MSF

O sistema de distribuição de alimentos de Israel e dos Estados Unidos em Gaza, iniciado há um mês, está matando a população palestina, forçando-a a escolher entre morrer de fome ou arriscar suas vidas por suprimentos mínimos. Com mais de 500 pessoas mortas e quase 4 mil feridas enquanto tentavam buscar comida, esse esquema é um massacre disfarçado de ajuda humanitária e deve ser imediatamente interrompido.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) apela às autoridades israelenses e seus aliados para que ponham fim ao cerco imposto à entrada de alimentos, combustíveis, suprimentos médicos e humanitários e voltem ao sistema humanitário pré-existente, coordenado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

O desastre em curso foi orquestrado pela organização Gaza Humanitarian Foundation (GHF sigla em inglês), apoiada por Israel e pelos Estados Unidos. A forma como os suprimentos são distribuídos força milhares de palestinos, que passam fome devido a um cerco israelense de mais de 100 dias, a caminhar longas distâncias para chegar aos quatro pontos de entrega e lutar por restos de alimentos.

Esses locais impedem que mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência tenham acesso à ajuda, enquanto pessoas são mortas e feridas em um processo caótico.

Mesmo diante de tanta violência, a cada nova atrocidade não há quase nenhuma reação — quanto mais condenação — por parte da comunidade internacional, que parece resignada com o seu papel de permitir e perpetuar uma campanha compatível com padrões de genocídio. Isso não pode continuar.

Eles iam nos matar um por um. Estávamos com fome, estávamos apenas tentando alimentar nossos filhos. O que mais posso fazer?”

– Hani Abu Soud, membro da comunidade no centro de saúde primária de Al-Mawasi

“Os quatro locais de distribuição, todos localizados em áreas sob o controle total das forças israelenses depois que as pessoas foram deslocadas à força de lá, são do tamanho de campos de futebol cercados por pontos de vigilância, montes de terra e arame farpado. A entrada cercada tem apenas um ponto de acesso para entrar ou sair”, explica Aitor Zabalgogeazkoa, coordenador de emergência de MSF em Gaza. “Os trabalhadores da GHF deixam cair os paletes e as caixas de alimentos e abrem as cercas, permitindo que milhares de pessoas entrem de uma só vez e lutem até o último grão de arroz.”

“Se as pessoas chegam cedo e se aproximam dos postos de controle, são alvejadas. Se chegarem na hora certa, mas houver um excesso de pessoas e elas pularem os montes e os arames, serão alvejadas”, relata Zabalgogeazkoa. “Se chegarem tarde, não deveriam estar lá porque é uma ‘zona evacuada’, então são baleadas.”

Todos os dias, as equipes de MSF veem pacientes que foram mortos ou feridos tentando conseguir comida em um desses locais.

“Muitas pessoas estavam sendo diretamente alvejadas. Isso não é ajuda. É uma armadilha mortal“, constata Hani Abu Soud, membro da comunidade no centro de saúde primária de Al-Mawasi. “Eles iam nos matar um por um. Estávamos com fome, estávamos apenas tentando alimentar nossos filhos. O que mais posso fazer? Um saco de lentilhas custa cerca de 30 a 40 shekels [cerca de 45 e 65 reais]”. “Não temos esse dinheiro. A morte se tornou mais barata do que a sobrevivência.”

À medida que as distribuições continuam, as equipes médicas notaram um aumento acentuado no número de pacientes com ferimentos a bala. No hospital de campanha de MSF em Deir Al-Balah, o índice de pessoas com esse tipo de lesão cresceu 190% na segunda semana de junho, em comparação com a semana anterior.

 

Sistema de saúde em colapso 

Os hospitais que ainda funcionam em Gaza estão devastados, operando com suprimentos mínimos de analgésicos, anestésicos e sangue. Hospitais em pleno funcionamento teriam dificuldades para lidar com um número tão alto de pacientes com traumas, que tomam as salas de emergência todos os dias.

Os pacientes feridos buscam ajuda em clínicas de saúde básica ou hospitais de campanha, já que as instalações de saúde maiores, com equipamentos para oferecer tratamento para traumas violentos, foram danificadas pelos ataques de Israel, e muitas não funcionam mais.

A clínica de MSF em Al Mawasi, que normalmente não está equipada para tratar pacientes com traumas, recebeu 423 pessoas feridas nos locais de distribuição desde 7 de junho.

Um paciente da clínica Al-Mawasi recebe cuidados para um ferimento que sofreu em um local de distribuição de alimentos. Ele diz: “Quem mais poderia alimentar minha família? Eu tive que ir”. Gaza, Palestina, junho de 2025. ©Nour Alsaqqa/MSF

Dez ou mais pacientes com ferimentos violentos chegam dos locais de distribuição todos os dias. Essas lesões exigem tratamento imediato, como transfusões de sangue ou cirurgia, que as equipes médicas não podem oferecer em uma clínica de saúde básica.

Os pacientes são encaminhados para os poucos hospitais que ainda funcionam, como o hospital Nasser, mas, com a escassez de assistência médica, MSF recebeu relatos de pessoas feridas em locais de distribuição de ajuda que morreram devido aos ferimentos antes de receberem tratamento.

Sem comida na tenda que compartilhava com sua família, Ashraf, de 17 anos, foi a um local de distribuição em 23 de junho. “Eu disse que era muito perigoso. Ele falou que queria comprar algo para a irmã”, conta Hanan, mãe de Ashraf. “Trinta minutos depois, ele me ligou, pedindo ajuda. Ele havia sido baleado. Essa ‘ajuda’ (o atual sistema de distribuição de alimentos) está encharcada de sangue.” Ashraf estava sendo tratado na clínica de saúde básica em Al Mawasi.

 

A ajuda como arma de guerra 

A ajuda não deve ser controlada por uma parte em guerra para promover seus objetivos militares. As autoridades israelenses usaram uma tática deliberada de privação de alimentos contra os palestinos em Gaza.

Israel transformou o suprimento de comida em uma arma, negando-o às pessoas e, depois, limitando-o a um volume baixíssimo, em uma violação total do direito humanitário internacional.

Os princípios humanitários existem para permitir a facilitação da assistência àqueles que mais precisam dela, com dignidade. A ajuda deve ser fornecida em escala, de acordo com esses princípios.

A população em Gaza tem necessidade vital e imediata do restabelecimento de um sistema de assistência genuíno e de um cessar-fogo sustentado para sua própria sobrevivência.

Compartilhar