França: em Calais, nenhum descanso para os refugiados

O jovem iraquiano Zulfaqar fala sobre as condições de vida no acampamento “Selva”, onde MSF oferece assistência a refugiados e migrantes desde setembro de 2015

França: em Calais, nenhum descanso para os refugiados

Quando Zulfaqar chegou a Calais, esperando encontrar uma vida melhor ao lado de seu pai na Grã-Bretanha, ele não poderia imaginar quanta violência iria enfrentar na “Selva”, um dos campos de refugiados mais conhecidos da França. O iraquiano de 20 anos vive aqui há quatro meses, testemunhando confrontos frequentes entre migrantes, ataques policiais com gás lacrimogênio, insultos racistas ocasionais por parte de moradores locais, e superlotação. 

Assim como outros refugiados em Calais, Zulfaqar nunca imaginou que um dia teria de deixar seu lar para nunca mais olhar para trás – ainda mais tendo de trocá-lo por uma tenda frágil, em um local onde frequentemente faz muito frio.

“Eram cinco horas de uma tarde de outubro de 2015 quando meu pai decidiu que nós deveríamos sair de casa e buscar um lugar seguro. Combatentes do Estado Islâmico estavam matando todo mundo que aparecia em seu caminho, independentemente de suas religiões ou grupos”, contou Zulfaqar, que vem do pequeno vilarejo perto de Mosul, no norte do Iraque.

Em poucas semanas, seu pai, que é caminhoneiro, conseguiu localizar uma rota clandestina para a Grã-Bretanha. Ele fez a viagem sozinho, sabendo que seria mais fácil transitar por rotas clandestinas e fazer travessias fronteiriças ilegais se estivesse sem ninguém. O plano era assegurar depois a reunificação familiar para sua mulher, suas quatro filhas e Zulfaqar.

Aconteceu, porém, que Zulfaqar não pôde esperar que seu pai iniciasse as tratativas para conseguir vistos legais para a família.

“Em uma manhã, eu tinha combinado de encontrar meu amigo Ali, mas ele estava muito atrasado. Eu liguei para ele, e uma voz grave e masculina atendeu: ‘Aqui é do Estado Islâmico’. Ali estava morto. Minha mãe e eu sabíamos que eu deveria sair do país imediatamente e que não era seguro para mim, um homem jovem, ficar lá nem mais um minuto”, contou.

“Eu sou jovem, eu não quero morrer”, disse.

Seus olhos se iluminaram. “Minha paixão é o futebol, eu jogava sempre. Muitas vezes, corria com a bola imaginando que era o Ronaldo ou o Messi, e sonhava acordado com o barulho dos fãs torcendo por mim.”

“Eu saí de casa com grandes sonhos e esperanças de encontrar felicidade e segurança. Isso foi o que me fez fugir do meu país, em primeiro lugar. Fui até a Turquia e de lá peguei um barco para a Grécia. Viajei até a França e consegui chegar até Calais. Preciso descobrir alguma maneira de chegar daqui até o Reino Unido.”  

Violência e superlotação

Desde que autoridades francesas demoliram a metade sul do acampamento “Selva” em março deste ano, as condições de vida na metade norte ficaram mais precárias devido à superlotação. As pessoas estão brigando por espaço, ainda mais com a chegada de mil novos refugiados somente no último mês, de acordo com ONGs locais, dos quais 142 são menores, somando um total de 700 menores na “Selva” até agora.

“A brutalidade da polícia tornou a vida de quem mora aqui muito mais difícil do que já era”, disse Zulfaqar.

No dia 20 de junho, entre 200 e 300 migrantes correram para a estrada que leva ao Eurotúnel, na esperança de conseguirem entrar em caminhões que fossem para a Grã-Bretanha.

Zulfaqar não estava entre as pessoas que tentavam cruzar o canal naquele dia.

“Eu estava com medo”, disse. “Eu corri até minha tenda e fechei a entrada. Mas até lá dentro era difícil respirar por causa do gás lacrimogêneo que a polícia tinha lançado por todo o acampamento, e não apenas na estrada.”

Bashir, um sírio de 17 anos que fugiu da cidade de Daraa depois que um ataque aéreo destruiu a casa de sua família, também relatou as experiências violentas vividas na França.

“Um dia, eu estava andando pela cidade de Calais quando uma mulher jogou uma sacola cheia de lixo em mim”, lembrou. “Para ser honesto, não sei por que ela fez isso – se foi por algo relacionado à situação na ‘Selva’ ou se ela simplesmente era racista.”

Brigas entre migrantes

O espaço virou um bem tão raro na “Selva” que alguns migrantes tentaram arrancar as latrinas estruturadas por ONGs para se instalarem no lugar delas.

O acampamento também enfrenta o problema do crescente número de ratos, apesar das tentativas de controle de pragas.

E o pior de tudo, de acordo com Zulfaqar, são as brigas entre migrantes.

“No mês passado, houve uma briga entre sudaneses e afegãos”, contou ele, referindo-se aos dois maiores grupos de migrantes na “Selva”. “Tudo começou por algo bobo, entre apenas dois homens, mas cada um deles começou a chamar reforços para a briga, que acabou se tornando um conflito entre pessoas dos dois países. Os dois grupos queimaram tendas uns dos outros. Mais de mil pessoas ficaram sem abrigo naquele dia.”

Ao mesmo tempo, os contêineres em que as autoridades querem relocar uma parte dos migrantes já estão cheios – com 350 pessoas na lista de espera.

“Eu cheguei a Calais há quatro meses, depois de sofrer violência no Iraque. Mas a violência acabou se mostrando o maior problema daqui também”, disse Zulfaqar. “Eu só quero me juntar ao meu pai no Reino Unido. Espero que, enquanto isso, as pessoas consigam viver em paz na ‘Selva’, onde um homem é capaz de bater em outro só por causa de uma escova de dentes, um celular ou um espaço para dormir.”

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