Farmacêutico brasileiro retorna de Moçambique

Ramon Spatini trabalhou na província de Tete gerenciando estoques de medicamentos do projeto

Moçambique é um país marcado pelo HIV/AIDS e pela falta de atendimentos médicos. Presente no país desde 2000, Médicos Sem Fronteiras (MSF) mantém atualmente projetos em Maputo, Tete, Lichinga, Mavalane e Angonia, a maioria deles voltado para terapia antirretroviral. Para atingir o objetivo de levar tratamento ao maior número de pessoas, MSF precisa estar sempre garantindo a quantidade ideal de medicamentos nas unidades de saúde.

Durante um ano, o farmacêutico brasileiro Ramon Spatini trabalhou no projeto de Tete e foi encarregado de gerenciar estoques de medicamentos que pertencem a MSF e ao Ministério da Saúde moçambicano. Nesta entrevista, ele fala a respeito dessa que foi sua primeira missão com MSF.

Você foi para a província de Tete com a função de gerenciar o estoque de medicamentos, como foi realizar essa tarefa?
Ramon Spatini – Além de gerenciar, nós apoiávamos o coordenador provincial de medicamentos na gestão do estoque deles e fazíamos concomitantemente a gestão do nosso estoque. Tínhamos cerca de 2 milhões de euros em medicamentos, principalmente antirretrovirais e medicamentos contra infecções oportunistas. Com isso, a gente controlava consumo, validade, recebimento das ordens, entrega dos produtos. Com relação ao Ministério da Saúde, estávamos sempre acompanhando o estoque deles para identificar possíveis rupturas de fornecimento. Procurávamos em nível nacional a causa dessas faltas de medicamentos para tentar corrigir os problemas. Em alguns momentos, tínhamos que apoiar emprestando ou fazendo doação dos medicamentos de MSF para evitar essas rupturas.

Normalmente, quais eram as causas dessas rupturas?
Spatini – Problemas de logística, algumas vezes na compra. Havia uma escassez de mão de obra qualificada para poder fornecer dados corretos em relação ao consumo. Isso era um grande problema.

Na sua opinião, lidar com essas rupturas no estoque local era a maior dificuldade ou tinha outro aspecto que representava um desafio ainda maior?
Spatini – Na verdade, o problema era todo o mecanismo. Os próprios profissionais não eram bem treinados e não faziam a requisição a tempo, esperavam o medicamento acabar. Os depósitos muitas vezes não tinham o que precisava, então era um círculo vicioso. Nós tentamos melhorar a gestão no estoque provincial oferecendo treinamento nas unidades periféricas para que eles não esperassem acabar o produto, pois muitas rupturas que nós observávamos nas unidades periféricas aconteciam por falta de gestão básica do próprio farmacêutico que trabalhava no centro de saúde. Já no caso de alguns medicamentos, que eram usados a nível nacional, entrava nosso estoque de segurança.

Em relação a essa transmissão de conhecimento, você observou um resultado positivo nas equipes locais após o contato com MSF?
Spatini – No período em que eu estive, foram realizadas duas formações com vários farmacêuticos sobre medicamentos retrovirais e sobre infecções de risco. Nessas formações também falávamos de gestão de farmácia e assim era possível que a qualidade aumentasse um pouco, porque muitos ainda tinham um nível básico de ensino. A escassez de farmacêuticos lá ainda é muito grande, mas com essas formações a gente conseguiu passar um grau de qualificação satisfatório.

Nesse sentido, qual a importância do seu cargo ter sido repassado para um moçambicano?
Spatini – Ele era um moçambicano farmacêutico, de Maputo, que conseguiu ser recrutado e contratado. Desde que cheguei, a gente trabalhou muito juntos. Eu acompanhei esse farmacêutico para deixá-lo à vontade, para fazer ele acreditar nele mesmo e não ter problemas na hora de lidar com os outros expatriados. Também era importante ele poder expor o ponto de vista dele e aprender um pouco da minha experiência. Eu acho que foi importante passar para ele porque certas coisas ele sabe lidar melhor do que eu, por ser um moçambicano. No sentido de saber lidar com as pessoas de modo a tocá-las e motivá-las a mudar o comportamento, porque isso é o mais difícil lá. O fato de eu ser brasileiro ajudou porque eu era muito próximo deles, sabia como falar, brincar, isso ajudou tanto a mim quanto a ele.

Quais as dificuldades que MSF enfrenta para combater os altos índices de pessoas infectadas com HIV no país?
Spatini – Um grande problema lá é diagnóstico, que não chega a muitos lugares. Existem muitas pessoas soropositivas que não são diagnosticadas. Os medicamentos de primeira linha de tratamento até tem em quantidade suficiente, mas daí em diante tem muitas rupturas. É fraco, ainda precisa de ajuda. MSF foi quem iniciou esse tratamento em Moçambique e fez com que ele seja acessível ao maior número de pessoas. Quando MSF começou a trabalhar lá em Tete, eram 2 mil pessoas em tratamento, hoje são 8 mil. Isso significa que MSF vem atingindo os objetivos a que se propôs. Você vê pacientes lá que chegam pesando 45 kg. Eles entram numa nutrição intensiva, tomam medicamentos antirretrovirais e em seis meses você não consegue dizer que a pessoa tem o vírus, porque realmente a recuperação é fantástica e faz a diferença. É possível ver pacientes vivendo 10, 15 anos.

Como MSF faz para lidar com esse grande fluxo de pacientes?
Spatini – Trabalhamos com o fast track, um método de fluxo rápido. Lá existem poucas unidades sanitárias, que têm muitos pacientes. Então o fato dos pacientes soropositivos todo mês terem que receber atendimento sobrecarregava o clínico. A idéia foi tirar esse paciente da consulta e diminuir as filas nos centros de saúde, que eram gigantescas. O clinico avalia essa pessoa e, a partir do momento que esse paciente soropositivo está estável, ele não tem mais necessidade de ir à consulta todo mês. Basta passar na farmácia para pegar os medicamentos. Nesse momento, o farmacêutico é o profissional de saúde que vai ter contato mensalmente com o paciente, podendo avaliar se ele esta faltando ou não. Assim era possível ter uma idéia de aderência ao tratamento, entre outras coisas.

Qual foi a importância dessa primeira missão na sua vida profissional?
Spatini – Eu sempre quis trabalhar nessa área de ajuda humanitária e nessa missão eu consegui utilizar muito mais as qualidades de um farmacêutico do que numa empresa, porque eu tinha que fazer gestão de equipe, planejamento, administração, organização. Exigia muito mais de mim do que numa empresa, pois eram muitas atividades ao mesmo tempo. Produzir relatórios, lidar com idiomas diferentes, eu me senti muito exigido e isso me motivou a sempre responder essas exigências.

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