Equipes de MSF vivenciam situação “pior que inferno na Terra” em Gaza

Secretário-geral da organização conclama países europeus a fazer pressão real para que Israel cesse massacre

Hospital Kamal Adwan, na Cidade de Gaza, destruído. Faixa de Gaza, 3 de fevreiro de 2025. ©Nour Alsaqqa/MSF

Leia a seguir a declaração do secretário-geral de Médicos Sem Fronteiras (MSF), Chris Lockyear, durante entrevista coletiva realizada hoje (16/06) em Bruxelas sobre a guerra em Gaza.

Estamos hoje em Bruxelas para entregar uma carta aberta com uma mensagem clara aos líderes da União Europeia, antes das reuniões do Conselho de Assuntos Externos e do Conselho Europeu, na próxima semana:

Nossa mensagem aos líderes é simples: instamos vocês a usarem todas as ferramentas políticas, econômicas e diplomáticas para exercer verdadeira pressão sobre Israel para que pare com o massacre em Gaza e permita o ingresso de ajuda humanitária sem restrições.

Há mais de vinte meses, os bombardeios incessantes e o cerco por parte das forças israelenses impõem uma campanha punitiva contra os palestinos em Gaza, transformando essa estreita faixa de terra em um cemitério de hospitais destruídos, valas comuns e bairros arrasados.

As autoridades de saúde de Gaza já registram quase 55 mil mortos e mais de 120 mil feridos. Esses números aumentam a cada hora que passa.

Dados de uma pesquisa recente com nossa própria equipe indicam que 40% das pessoas que nosso pessoal conhecia e que morreram em Gaza tinham menos de 10 anos de idade.

Segundo a revista The Lancet, do total de bebês nascidos desde o início da guerra, mais de 350 já morreram.

As equipes da MSF no terreno descrevem uma situação “pior do que o inferno na Terra”: casas, hospitais, mercados, redes de água, estradas e linhas de energia foram destruídos pelas forças israelenses. Nossos colegas testemunham os ferimentos, os assassinatos, a destruição, o deslocamento forçado e a fome da população em Gaza.

Eles estão testemunhando o desmantelamento sistemático de todo o aparato que sustenta a vida civil.

O sistema de saúde foi destruído diante de nossos olhos; MSF presencia isso diretamente através das experiências diárias e angustiantes de nossas equipes médicas no terreno. Apenas alguns hospitais permanecem parcialmente funcionais, operando sem eletricidade confiável, sem água potável e sem medicamentos essenciais.

Na semana passada, fomos forçados a transferir nossas atividades cirúrgicas do hospital Nasser, em Khan Younis, para um hospital de campanha da MSF em Deir Al Balah, devido a ordens de deslocamento, bombardeios e restrições de movimento que impediram que pacientes fossem transferidos e que nossa equipe pudesse se deslocar. Isso tem sido um ciclo recorrente para nossos pacientes e equipes ao longo deste conflito.

Desde o início da guerra, funcionários e pacientes da MSF tiveram que abandonar 20 unidades de saúde diferentes e enfrentaram 50 incidentes violentos, incluindo ataques aéreos contra hospitais, disparos de tanques contra abrigos previamente identificados como protegidos, ofensivas terrestres contra centros médicos, comboios atacados e o assassinato trágico de 11 colegas.

Esses ataques não são incidentes isolados. São parte de um desrespeito sistemático ao Direito Internacional Humanitário e à resolução 2286 do Conselho de Segurança da ONU, que exige a proteção da missão médica.

Como consequência direta da destruição do sistema de saúde de Gaza, atualmente, segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 13 mil pessoas – incluindo mais de 4.500 crianças – precisam urgentemente ser evacuadas para tratamento médico. No entanto, apesar dessa necessidade e da capacidade comprovada da União Europeia, apenas algumas centenas de pacientes foram acolhidos pelos Estados-Membros europeus. Ao mesmo tempo em que o direito dos palestinos de retornarem deve ser sempre garantido, esse número pode – e deve – multiplicar-se muitas e muitas vezes.

A única esperança de salvação que resta em Gaza – a assistência humanitária – está sendo usada como instrumento de guerra:

O fluxo de suprimentos está sendo sufocado.

Quando não é completamente bloqueada, a ajuda é redirecionada para atender a objetivos militares e políticos. Essa manipulação representa uma grave violação do Direito Internacional Humanitário. A ajuda é uma obrigação legal, não uma moeda de troca. Retê-la equivale a punição coletiva.

Recentemente, a responsabilidade pela entrega de ajuda foi transferida para a Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês). MSF considera isso perigoso e imprudente, parte de um plano de EUA e de Israel para instrumentalizar a ajuda. A GHF iniciou suas atividades em 27 de maio. Desde então, centenas de palestinos foram atendidos em hospitais e dezenas foram mortos ao serem alvejados em locais de distribuição, enquanto aguardavam por itens básicos para sobreviver.

Como descreveu um de nossos colegas em Gaza: alguns voltaram com um saco de farinha; outros, envoltos em uma mortalha.

Por exemplo, em 11 de junho, a clínica Al Mawasi, apoiada por MSF, recebeu 32 feridos, incluindo 3 que chegaram já sem vida. Eles foram baleados a caminho de um centro de distribuição de alimentos administrado pela GHF. Este não foi um incidente isolado. Três dias antes, equipes no hospital Nasser receberam 40 pacientes, a maioria com ferimentos por arma de fogo.

A GHF parece ser uma manobra cínica para fingir conformidade com o Direito Internacional Humanitário. Na prática, usa a ajuda como ferramenta para deslocar forçadamente pessoas, como parte de uma estratégia mais ampla de limpeza étnica da Faixa de Gaza, e para justificar a continuação desta guerra sem limites.

Durante mais de 20 meses, as equipes de MSF presenciaram deslocamentos forçados repetidos da população de Gaza e a destruição de infraestrutura essencial à vida, tornando a região incompatível com a sobrevivência humana. Membros do governo de Israel vincularam claramente essa estratégia militar a apelos pela eliminação dos palestinos de Gaza – um claro chamado à limpeza étnica.

Nossas equipes veem diariamente padrões de genocídio… nos assassinatos de profissionais de saúde e trabalhadores humanitários… no bombardeio de estruturas médicas e abrigos para deslocados… no bloqueio total de alimentos, água e suprimentos médicos. E no total desrespeito às ordens emitidas pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), que exigiu que Israel garantisse ajuda humanitária e prevenisse o genocídio.

Israel está destruindo sistematicamente as condições necessárias para a vida palestina em Gaza.

Família palestina deslocada em um tuktuk, voltando para se estabelecer na cidade de Beit Lahia, ao norte de Gaza. Faixa de Gaza, 17 de fevereiro de 2025. ©Nour Alsaqqa/MSF

Esta catástrofe é provocada deliberadamente por decisões humanas; prolongada e viabilizada por uma comunidade internacional que ainda não teve coragem ou determinação para detê-la.

MSF, como muitas outras organizações, tem pedido repetidamente por um cessar-fogo imediato e incondicional, acesso humanitário irrestrito e respeito ao Direito Internacional Humanitário por todas as partes. Condenamos atrocidades de todos os lados, incluindo sequestros, detenções arbitrárias e ataques indiscriminados contra civis. Mas essa ofensiva militar, contra um povo sitiado, continua e se intensifica em brutalidade a cada dia.

O que está acontecendo em Gaza é prova de um profundo fracasso no exercício de responsabilidade moral e política.

 

Concluo pedindo aos Estados-Membros da União Europeia e outros países que demonstrem que solidariedade não é apenas discurso – mas ação e responsabilização.

Pedimos especificamente que a União Europeia e seus governos exerçam pressão real e utilizem sua influência para interromper esse ataque e permitir ajuda humanitária irrestrita em Gaza.

Nossa mensagem aos líderes europeus e além é clara:
– encerrem o cerco;
– defendam a ação humanitária;
– garantam a responsabilização pelos crimes cometidos e pelas violações do Direito Internacional Humanitário.

Aos líderes europeus: quantas crianças, mulheres e homens mais precisam ser mortos ou retirados dos escombros até que vocês ajam com firmeza?

Aos líderes europeus: vocês continuarão sendo cúmplices por meio da inação?

Aos líderes europeus: vocês continuarão emitindo declarações vazias, expressando preocupação, enquanto enviam as armas que ferem e matam as crianças que tratamos todos os dias?

Este é um momento que exige mais do que palavras.

É necessário coragem política, responsabilidade legal e compromisso moral para pôr fim imediatamente ao sofrimento do povo de Gaza.

 

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