Epidemia de Marburg em Angola: quando salvar vidas parece ser uma atividade cruel

Profissionais de MSF relatam como foi doloroso tomar medidas, muitas vezes cruéis, para conter o avanço da epidemia de Marburg, que agora parece estar estabilizada. MSF suspendeu a intervenção de emergência e já repassou suas atividades.

No final de março, quando as primeiras equipes de MSF chegaram à Uíge, em Angola, epicentro da epidemia da febre de Marburg, nossos profissionais foram forçados a tomar medidas drásticas para conter um dos mais contagiosos e letais vírus já conhecidos pela humanidade. Hoje, quatro meses depois, a epidemia de Marburg já matou 350 pessoas dos 391 casos confirmados até agora, e parece estar estabilizada. Alguns poucos novos casos foram confirmados nas últimas semanas, o que levou MSF a terminar – no dia 7 de julho – a intervenção de emergência e repassar suas atividades às autoridades locais de saúde, apoiadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No entanto, as equipes que trabalham regularmente na cidade de Uige e a coordenação que fica em Luanda, capital da Angola, vão acompanhar de perto a situação e manter contato estreito com as autoridades locais de saúde.

O grande desafio dos profissionais de MSF, durante esses quatro meses de intervenção, era conseguir uma aproximação mais sensível e humana com as famílias afetadas por um dos vírus mais cruéis da humanidade. Qualquer um ficaria irado e apavorado se membros da sua família fossem retirados de suas casas por estranhos vestidos como astronautas, levados para um hospital e, após alguns dias, trazidos de volta em sacos mortuários, para serem enterrados há pelo menos dois metros de profundidade.

Mas os profissionais de ajuda humanitária que lutavam contra esta febre hemorrágica – semelhante à febre do Ebola – tinham uma única e clara prioridade em mente: conter a epidemia e salvar vidas, isolando as pessoas infectadas o mais rápido possível.

Agora que o número de novos casos está próximo da estagnação, MSF está aproveitando para refletir sobre o que aprendeu nesses últimos quatro meses. "A situação que encontramos aqui era horrível", disse Peter Maes, especialista em água e saneamento que trabalha na unidade de controle de infecções de MSF. "Tínhamos que buscar corpos em decomposição em casas e necrotérios. Não havia sequer tempo para falar com os familiares. Não havia tempo para luto. O risco de contágio de pessoas mortas é altíssimo, e era urgente enterrá-las".

Mudar a comunicação com a comunidade

Por causa disso, os "astronautas" passaram a ser vistos como estrangeiros que estavam ali para ‘roubar’ seus mortos – uma acusação séria diante da crença local de que se uma pessoa não é devidamente enterrada, ela pode ser tornar um espírito do mal e se vingar dos vivos.

Outros diziam que os "astronautas" eram demônios que "vieram para nos exterminar".

"Era óbvio que tínhamos que mudar nossa relação com a comunidade. E fizemos isso logo que pudemos", disse Peter Maes.

Algumas semanas depois a epidemia foi oficialmente confirmada e MSF começou a 'humanizar' os enterros, permitindo que os familiares participassem: "Os familiares ficavam a uma distância suficiente para ver o rosto do parente morto. O saco mortuário era rapidamente aberto, para que eles pudessem ver seus parentes antes de enterrá-los, desde que usassem máscaras protetoras", disse Peter.

MSF então reforçou a equipe de sensibilização para melhorar a comunicação com a comunidade afetada sobre a importância das medidas drásticas, como o isolamento de pacientes e o enterro de vítimas sem que fossem realizados funerais da forma como a comunidade estava acostumada. E isso precisava ser informado de forma clara e bem objetiva, para que as famílias levassem seus doentes para o hospital montado por MSF e permitissem o isolamento dos afetados para evitar maiores infecções.

Mensageiros importantes

A lista de comportamentos de risco é enorme, já que o vírus pode ser transmitido pelo contato com pessoas infectadas e sintomáticas – especialmente com o contato com os fluidos corporais dessas pessoas, como sangue, leite materno, saliva e suor. Além disso, era preciso informar que a febre hemorrágica de Marburg não tem cura, e que os profissionais de MSF só podiam tratar os sintomas da doença – tais como febre alta e desidratação – reduzindo assim o sofrimento dos doentes.

No entanto, os mensageiros mais importantes sobre a febre de Marburg foram os próprios pacientes que sobreviveram à epidemia. O motorista de táxi Horacio, de 27 anos, foi o primeiro sobrevivente conhecido por MSF. Após receber alta, Horacio foi contratado por MSF para sensibilizar a população sobre Marburg e encorajar outros angolanos a irem para o hospital.

Outro recurso utilizado para sensibilização das famílias foi a visita domiciliar. “Nós fizemos as visitas, conversamos com os familiares, dizemos a eles para não tocarem nas vítimas de Marburg, e apresentávamos as medidas de higiene”, explica o Dr. Martin De Smet, Coordenador de Emergência de MSF. “Dávamos ao chefe da família uma roupa protetora, e os vizinhos, especialmente as crianças, viam ele se transformar em um ‘astronauta’. Então, o chefe da família entrava em casa com a equipe de desinfecção de MSF e decidíamos juntos o que queimar e o que desinfetar com uma solução a base de cloro”.

Ironicamente, uma simples solução a base de cloro e água pode ser suficiente para destruir o vírus, que é um ‘assassino’ potente assim que encontra uma oportunidade para se espalhar. Em Uíge, esta oportunidade foi felizmente contida e parece que o vírus de Marburg irá retornar logo para seu estado inativo.

No entanto, MSF vai monitorar de perto surtos de febres hemorrágicas. E caso seja necessário a organização sabe que pode contar com profissionais ainda mais experientes e prontos para retornar a campo assim que forem convocados.

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