Entenda o tratado de pandemias em cinco perguntas e respostas

Em bate-papo, Francisco Viegas, assessor da Campanha de Acesso a Medicamentos de MSF, explica o acordo.

Atividades de saúde em Vaz Lobo, no Rio de Janeiro, durante a pandemia da COVID-19. Maio de 2020. © Mariana Abdalla/MSF

Francisco Viegas, assessor da Campanha de Acesso a Medicamentos de Médicos Sem Fronteiras (MSF), esteve recentemente em Genebra, na Suíça, em uma rodada de discussões sobre o tratado de pandemias, e explica os principais pontos do acordo.

1 – O que é o tratado de pandemias e qual é a sua importância?

Neste momento, há uma discussão de como os 194 países que compõem a Organização Mundial da Saúde (OMS) podem chegar a um acordo para que o mundo esteja mais preparado para responder e controlar futuras pandemias. Nesse sentido, o que está em debate é a possível utilização de instrumentos vinculantes – isto é, acordos que geram compromissos que os países sejam obrigados a cumprir – para tornar a adesão às medidas descritas no documento em compromissos obrigatórios e vinculantes. E, em última instância, se torne um marco legal que permita uma maior equidade no acesso a medicamentos em caso de futuras crises sanitárias globais.

Queremos evitar aquilo que a gente experimentou e vivenciou durante a pandemia da COVID-19, com uma iniquidade muito grande do acesso à vacina, a equipamentos de proteção individual e a medicamentos.

Profissional de MSF administra vacina contra a COVID-19 em um migrante venezuelano no posto de saúde de MSF em Aguas Verdes, próximo à fronteira entre Peru e Equador. Março de 2022. © MAX CABELLO ORCASITAS

A ideia é utilizar um instrumento semelhante ao que foi adotado na convenção de controle do tabaco. Ele gerou efeitos muito fortes na sociedade. Efeitos que observamos até hoje, como as sérias limitações para fumar em lugares fechados, a diminuição de propaganda do produto, entre outros.

Então o que se espera é que, a partir desse acordo, possamos chegar a compromissos vinculantes que resultem em um sistema de saúde mais forte, que consiga ter uma maior vigilância para patógenos com potencial de impacto na saúde pública global e também uma maior equidade na distribuição e no acesso aos insumos necessários para enfrentar uma pandemia.

2 – Quais são os diferentes pontos de vista defendidos neste debate?

Existe claramente uma tensão entre os países do Norte e do Sul global. Os países do Norte já têm garantido o acesso a insumos e a tecnologias de saúde, medicamentos e vacinas. Inclusive, a gente viu esse nacionalismo exacerbado com os países do Norte global detendo um número de vacinas cinco vezes maior que o tamanho da sua população. Isso gerou uma iniquidade muito grande no acesso mundial ao imunizante.

Nesta discussão do tratado, a maior preocupação deles está na vigilância sanitária para evitar que esses patógenos cheguem aos seus países ou em suas fronteiras. Então essas nações têm mais esse olhar de biossegurança e de defesa das suas populações.

Os países no Norte global também têm uma indústria farmacêutica com grande capacidade de produção e de inovação. Por isso, eles defendem muito fortemente os interesses do setor privado, do setor farmacêutico, em detrimento do interesse das pessoas.

os países do Sul global querem um acesso mais equitativo a medicamentos, vacinas e insumos, além garantias vinculantes em relação à flexibilização do uso de patentes e da produção de vacinas e de insumos. Como países que contribuem com a pesquisa e o desenvolvimento das tecnologias, muitas vezes compartilhando material genético e biológico, os países do Sul global também querem prioridade, querem maior acesso e repartição de benefícios como uma contrapartida por terem compartilhado material fundamental para a pesquisa.

Enfermeira de MSF testa paciente para COVID-19 em Portel, no Pará. Julho de 2021. © Mariana Abdalla/MSF

Também há um maior interesse dos países do Sul global em exigir compromissos claros por preços justos e maior transparência sobre os investimentos em inovação, porque muitas das vacinas, especialmente para a COVID-19, foram desenvolvidas com recurso público e foram posteriormente privatizadas com somente um produtor fornecendo a tecnologia, como foi o caso da Moderna.

Por isso, os países do Sul global estão exigindo uma maior proteção e regulamentação quando existe um financiamento público para inovação, pesquisa e desenvolvimento. Neste caso, é preciso determinar condicionalidades de acesso a um preço justo e de transferência de tecnologia para mais de um produtor, evitando escassez.

3- Qual é a visão de Médicos Sem Fronteiras?

Nossa preocupação é evitar que as mesmas iniquidades na distribuição de vacinas e de insumos não se repitam * em uma futura pandemia. Houve uma fala recente muito forte do presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em que ele destacou que até hoje faltam vacinas da COVID-19 em seu país. Então esse não é um tema que está superado.

Hospital com 60 leitos desenvolvido por MSF para apoiar o Hospital Distrital de Khayelitsha a lidar com a alta de transmissão da COVID-19. África do Sul, junho de 2020. © Rowan Pybus (@Makhulu_)/MSF

Infelizmente, isso não é algo novo. A gente também já viu a iniquidade na distribuição e no acesso a vacinas e insumos na epidemia de gripe aviária, em que os países que contribuíram com a pesquisa, ficaram muitas vezes no final da fila para receber o imunizante.

Também não podemos mais aceitar a dependência tecnológica de somente um ou outro produtor em uma futura pandemia. A gente tem que expandir a capacidade de produção e tem que ter inovação e produção também no Sul global.

4 – Quais são os pontos positivos e negativos dessa versão do texto do tratado?

Em relação aos pontos negativos e positivos do atual texto, ele traz alguns elementos importantes para uma maior equidade no acesso a medicamentos, mas são elementos ainda muito, muito fracos. Não são elementos que de fato vão garantir uma mudança do acesso a medicamentos e a insumos em uma futura crise humanitária.

Então, de fato, há uma preocupação na menção de temas importantes como transferência de tecnologia, suspensão de direitos de propriedade intelectual, compartilhamento de acesso, entre outros. Todos esses elementos estão incluídos ali como pontos importantes, mas estão incluídos como temas não vinculantes. Estão incluídos como compromissos voluntários que os países podem adotar.

• Quer entender mais sobre as patentes? Confira em quatro vídeos explicativos

E esse é o grande problema do atual acordo. Ele traz as temáticas relevantes, mas não apresenta compromissos obrigatórios que muitas vezes, na natureza desses acordos, os países podem simplesmente não adotar e não seguir. E com isso, a gente se encontraria muito facilmente no mesmo contexto da pandemia de COVID-19.

Resposta de MSF à COVID-19 em Porto Velho, Rondônia. Abril de 2021. © Diego Baravelli

Outro elemento bastante central dessa discussão e que foi algo que MSF advogou bastante, tanto na Organização Mundial do Comércio como aqui no Brasil, é a suspensão das proteções de patentes durante uma pandemia, aumentando a capacidade de produção e de disponibilização das tecnologias.
Entendemos que, se não priorizamos a vida das pessoas durante um momento crítico de emergência de saúde pública internacional, estamos falhando como humanidade.

5 – Quais são os próximos passos?

A previsão estipulada pela OMS é a de que esse acordo se encerre em maio de 2024. Tem uma série de rodadas de negociações que os países estão realizando, e uma das críticas é que essas negociações estão ocorrendo a portas fechadas. Estão acontecendo sem a participação da sociedade civil e da sociedade de forma mais ampla, o que não é o desejado para uma discussão tão importante como essa.

Atividades de MSF em resposta à pandemia da COVID-19 em Tefé, no Amazonas. Fevereiro de 2021. © Mariana Abdalla/MSF

*MSF publicou recentemente uma análise sobre temas prioritários do acordo de pandemias. Veja aqui (em inglês).

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