Em meio a corte de financiamento dos EUA, cresce número de crianças em hospitais do Afeganistão

Situação já era preocupante antes da suspensão da ajuda externa dos EUA no início do ano; desde então, 422 unidades de saúde fecharam ou interromperam as atividades

Reza Gul alimenta o neto, que nasceu prematuro, na ala neonatal do Hospital Regional Mazar-i-Sharif, apoiado por MSF, na província de Balkh, Afeganistão. ©Logan Turner/MSF

O som de choro e de aparelhos médicos toma a pequena sala. Profissionais de enfermagem correm de leito em leito, verificando os sinais vitais dos pacientes. Mães colocam máscaras de oxigênio nos rostos de seus filhos.

O médico do pronto-socorro entra pela porta giratória da sala de emergência pediátrica do hospital Boost, na província de Helmand, no Afeganistão.

“Tenho 17 pacientes aguardando para serem internados, mas não tenho onde colocá-los”, lamenta Ahmed*, médico do pronto-socorro de Médicos Sem Fronteiras (MSF).

São seis horas da noite, e o turno de trabalho noturno acaba de começar. Todos os leitos do departamento pediátrico estão ocupados. Muitas vezes, um mesmo local é compartilhado por dois pacientes. E a próxima chegada de pessoas em busca de atendimento já se aproxima.

“Este é um momento caótico para nós. A cada dia, mais e mais pacientes chegam”, conta Ahmed.

Pacientes no pronto-socorro do Hospital Provincial Boost, em Lashkar Gah, província de Helmand. Afeganistão, maio de 2023. ©Paul Odongo/MSF

O número de crianças menores de 5 anos de idade que chegam à triagem do pronto-socorro do hospital Boost mais que dobrou desde 2020, passando de 53.923 para 122.335 pacientes em 2024.

Em abril deste ano, 13.738 crianças menores de 5 anos foram atendidas no pronto-socorro do hospital Boost – o maior número mensal de consultas no pronto-socorro desde pelo menos 2020.

Encontrar espaço, tempo e recursos para tratar o número crescente de crianças é um desafio. Elas chegam com condições delicadas, como sepse, insuficiência respiratória e desnutrição grave.

No entanto, esse aumento de pacientes pediátricos não está ocorrendo apenas na província de Helmand.
As unidades de saúde em outras partes do Afeganistão também enfrentam pressões semelhantes, incluindo o hospital regional de Mazar-i-Sharif, na província de Balkh, e o hospital regional de Herat, em Herat.

 

Corte de financiamento dos Estados Unidos agrava crise no sistema de saúde

“As famílias estão lutando para obter os cuidados de saúde de que precisam. Muitas unidades médicas em todos os níveis [de atenção] enfrentam dificuldades, por causa da falta de profissionais e da escassez de medicamentos básicos e equipamentos de diagnóstico”, afirma Julie Paquereau, coordenadora médica da MSF no Afeganistão.

Esta já era a situação antes da suspensão da ajuda externa dos Estados Unidos no início deste ano, quando houve o cancelamento de uma quantia de mais de 1 bilhão de dólares em financiamento para projetos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) no Afeganistão, de acordo com uma estimativa do Inspetor Geral Especial dos EUA para a Reconstrução do Afeganistão.

A falta de acesso levará mais bebês e crianças com condições de risco de morte a hospitais provinciais e regionais já sobrecarregados, incluindo os que MSF apoia.”

– Julie Paquereau, coordenadora médica da MSF no Afeganistão

Desde então, 422 unidades de saúde no Afeganistão suspenderam as atividades ou fecharam, afetando o acesso à saúde de mais de 3 milhões de pessoas, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

“À medida que essas unidades fecham ou reduzem suas atividades, a disponibilidade de serviços básicos de saúde diminui, principalmente para mulheres e crianças, que terão que esperar mais tempo ou viajar mais longe para receber tratamento”, explica Paquereau.

“A falta de acesso levará mais bebês e crianças com condições de risco de morte a hospitais provinciais e regionais já sobrecarregados, incluindo os que MSF apoia. E algumas pessoas podem nunca ter acesso a cuidados, impossibilitadas de chegar a uma unidade de saúde.”

Entre as consultas com crianças recém-chegadas ao pronto-socorro, Ahmed pega o telefone e tenta encontrar vagas nas unidades de terapia intensiva pediátrica e neonatal nos demais locais do hospital Boost. Outros integrantes da equipe ligam para unidades de saúde próximas para ver se há leitos disponíveis.

“Se não encontrarmos vagas, eles ficarão aqui. Alguns pacientes ficam no pronto-socorro por um, dois dias”, diz Ahmed.

 

Aumento do número de pacientes na triagem em Herat

Em outro hospital, a cerca de 500 quilômetros a noroeste, mulheres se aglomeram na grande tenda branca que compõe a triagem pediátrica do hospital regional de Herat, com crianças agarradas aos seus braços e pernas. Algumas famílias se distribuem do lado de fora, esperando sua vez de receber atendimento.

Os pais nos dizem que não encontram serviços suficientes nas clínicas locais e não têm condições de pagar o tratamento em clínicas particulares, então vêm aqui, onde MSF oferece atendimento gratuito.”

– Jameela*, enfermeira de MSF

O número de famílias que chegam à triagem pediátrica do hospital regional de Herat vem crescendo há anos.

Em um dia normal em 2025, a equipe de enfermagem da triagem atende 1.300 pacientes. Em alguns dias, mais de 2 mil bebês e crianças chegam, esperando para serem atendidos.

Salima, médica de MSF, analisa os prontuários médicos de três bebês em tratamento na unidade de terapia intensiva neonatal no Hospital Regional de Mazar-i-Sharif, na província de Balkh. Afeganistão, janeiro de 2025. ©Logan Turner/MSF

Muitas das crianças não apresentam um quadro crítico, então o ideal seria que os responsáveis tivessem procurado atendimento em clínicas de saúde básicas.

“As mães estão trazendo seus filhos por temerem que o estado deles piore. Elas sentem que não têm para onde ir”, justifica Jameela*, enfermeira de MSF que trabalha na triagem pediátrica.

“Os pais nos dizem que não encontram serviços suficientes nas clínicas locais e não têm condições de pagar o tratamento em clínicas particulares, então vêm aqui, onde MSF oferece atendimento gratuito”, diz ela.

Isso está criando uma grande pressão sobre os profissionais da triagem, que já se encontram muito sobrecarregados e também atendem a um número crescente de pacientes em estado altamente crítico, com condições que ameaçam a vida.

Nos primeiros cinco meses de 2025, uma média de 354 crianças foram atendidas no pronto-socorro todos os dias. Isso representa um aumento de 27% em relação ao mesmo período de 2024.

“Muitas famílias nos dizem que não têm dinheiro para o transporte até o hospital, então esperam para ver se a criança melhora ou se conseguem juntar o montante necessário. Isso gera atrasos no atendimento e agravamento do quadro”, diz Jameela.

 

Famílias atrasam ida ao hospital devido à falta de dinheiro

Sentada de pernas cruzadas em sua metade do leito na unidade de terapia intensiva pediátrica do hospital Boost, Zarmeena segura a mão de sua filha de sete meses de vida, Asma.

Três semanas atrás, Asma parou de mamar e começou a ter febre. Ela estava com dor de estômago e diarreia, mas Zarmeena não tinha dinheiro. O marido dela é uma pessoa com deficiência e não pode trabalhar.

“Eu tinha um trabalho de costura para uma mulher, mas ela só me pagaria quando eu terminasse o serviço. Costurei o mais rápido que pude, mas quando finalizei, Asma estava muito pior”, diz Zarmeena.
Asma já estava doente há duas semanas quando Zarmeena conseguiu levá-la ao médico.

“Levamos ela a três ou quatro médicos diferentes. Eles nos deram remédios que custavam 1.500 afeganes [cerca de 120 reais]. Terminamos a medicação, mas não adiantou”, diz Zarmeena.

Sem dinheiro, Zarweena diz que perdeu a esperança. Então, o irmão dela levou mãe e filha ao hospital Boost, onde Asma foi internada.

Zarmina acompanha a filha Asma na unidade de terapia intensiva pediátrica do hospital Boost, apoiado pela MSF, em Helmand. Afeganistão. ©Tasal Khogyani/MSF

“Agora, ela não está mais tendo convulsões”, diz Zarmeena. “Os médicos sabem o que estão fazendo. Se ela melhorar, vou esperar e levá-la para casa. Mesmo que demore, só quero que ela fique bem.”

 

Pacientes chegam mais tarde e em pior estado

Do outro lado do país, Fareed atende muitos pacientes como Zarmeena no departamento pediátrico do hospital regional de Mazar-i-Sharif, na província de Balkh, no norte do Afeganistão.

Em maio, 51 pacientes em média chegavam todos os dias em estado muito crítico, necessitando de tratamento imediato.

Um alto número de crianças apresenta condições que se tornaram fatais porque as famílias não tiveram acesso ao tratamento em tempo hábil, explica Fareed. Isso pode ocorrer por diversos motivos, incluindo falta de dinheiro para transporte ou medicamentos, desconhecimento da gravidade da doença e indisponibilidade de um mahram (acompanhante masculino) para levar a criança e a mulher que a acompanha ao hospital.

“Aconselhamos os pais a levarem seus filhos à clínica mais próxima assim que perceberem os sintomas de uma doença. O tratamento oportuno é crucial para evitar situações que podem se tornar fatais para as crianças”, diz Fareed, mesmo reconhecendo como pode ser difícil para as famílias ter acesso aos serviços de saúde.

De volta ao hospital Boost, em Helmand, Ahmed sai do pronto-socorro na manhã seguinte – cansado após o turno de trabalho da noite, mas com um sorriso no rosto.

MSF e a equipe de saúde pública encaminharam alguns pacientes para outros hospitais e conseguiram encontrar leitos suficientes nas enfermarias pediátrica e neonatal.

Nenhum dos pacientes passou a noite no pronto-socorro.

“Espero que não seja tão movimentado esta noite”, diz ele. Mas é um novo dia, o que significa que centenas de outros pacientes chegarão, precisando de tratamento urgente para salvar suas vidas.
E o número de crianças em estado crítico deve aumentar nas próximas semanas, com a chegada do pico sazonal de casos de desnutrição em julho.

 

*Nomes alterados para proteger a identidade

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