“É extremamente angustiante”: combatendo a violência sexual nas favelas de Nairóbi

A violência sexual e de gênero é muito comum na segunda maior favela de Nairóbi, Mathare, onde cerca de 300 mil pessoas vivem em condições precárias

"É extremamente angustiante": combatendo a violência sexual nas favelas de Nairóbi

Por Abigail Betts, do departamento de Captação de Recursos de MSF em Londres

“Após uma ida recente ao Quênia, tive a sorte de visitar outros dois projetos de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no norte de Nairóbi e no condado de Kiambu, nas proximidades.

As equipes de MSF estão trabalhando no Quênia desde 1987 e, à medida que o país se desenvolve, os cuidados médicos que oferecemos lá também têm que se expandir.

O projeto que visitamos está localizado em Mathare, a segunda maior favela de Nairóbi, com uma população estimada em 300 mil habitantes, que vivem em um espaço muito apertado.

Leva apenas 45 minutos para chegar do distrito comercial central até Mathare, no distrito de Eastlands – se o trânsito de Nairóbi permitir, é claro –, mas são mundos completamente diferentes.

À medida que você se aproxima do escritório de MSF, os prédios corporativos reluzentes dão lugar a uma coleção desorganizada de chapas metálicas, onde crianças andam pelas ruas e pilhas de lixo são recolhidas na beira da estrada.
É impressionante e senti uma grande tristeza ao ver mundos tão diferentes separados por alguns quilômetros de distância.

A casa verde

Nossa primeira parada foi na Casa Verde, o escritório de coordenação do projeto, que é, como o nome sugere, pintado de verde.

Chegamos bem a tempo de ingressar na equipe de promoção de saúde, em sua visita a uma escola primária local, onde fariam um show educacional com fantoches sobre violência sexual.

O show começou com o líder do teatro da comunidade local, Vinny, explicando às crianças que elas aprenderiam sobre suas partes íntimas e que ninguém deve vê-las, tocá-las ou fotografá-las.

Isso preparou o cenário para o show de marionetes de 90 minutos, que envolveu um tio molestando sua jovem sobrinha, que ligou para o número de telefone gratuito de MSF para denunciá-lo.

O teatro é um meio-chave para transmitir mensagens importantes para crianças pequenas, especialmente sobre assuntos ainda considerados tabus.

O show foi tão poderoso que, no final, as crianças estavam falando o número de telefone gratuito de MSF para o qual deveriam ligar se necessário, enquanto os professores eram solicitados a continuar transmitindo essa importante mensagem.

Respondendo às necessidades locais

Quando retornamos à Casa Verde, conversamos com a líder da equipe médica, Cecilia, uma médica que trabalha para fortalecer o sistema de saúde.

Cecilia entrou no projeto em julho de 2016, tendo trabalhado anteriormente com MSF na Somália e no Sudão do Sul. Ela gerencia uma equipe de cerca de 100 pessoas nas sub-equipes médicas, farmacêuticas e de ambulância.

Cecilia explicou que muitos dos moradores da favela não têm carteira de identidade, seguro médico ou dinheiro, o que limita muito seu acesso à assistência médica em caso de emergência.

Nosso trabalho na área precisou evoluir junto com Mathare, respondendo às consequências da violência.

Uma avaliação de MSF em 2017 concluiu que o ônus da violência na saúde e na saúde mental na região era comparável de várias maneiras aos ambientes mais violentos da América Central e da Colômbia.

A Casa Lavanda

MSF trabalha com violência sexual e de gênero em Mathare há mais de uma década e tornou-se conhecida nesta área.
O projeto de violência sexual e de gênero na Casa Lavanda foi lançado em 2008, com um serviço de ambulância de emergência seis anos depois.

Como as ambulâncias de MSF estão sempre no cenário de emergências e são muito visíveis, tendemos a ser o primeiro ponto de contato.

Cecilia explicou como é importante não substituir o sistema de saúde, mas apoiar e pressionar por mudanças, visando que o Ministério da Saúde assuma o serviço de urgência no futuro.

Atualmente, apoiamos cerca de 30 profissionais do Ministério da Saúde em quatro locais que oferecem cuidados para sobreviventes de violência sexual e de gênero, localizados em Kasarani, Dandora, Makadore e no Hospital Mama Lucy Kibaki, além de fornecer treinamentos e materiais informativos de apoio em dois locais adicionais.

Serviços de emergência

O Hospital Mama Lucy tem uma clínica para sobreviventes de violência sexual e de gênero no departamento de emergência e é o primeiro ponto de referência para as ambulâncias que enviamos da Casa Lavanda.

A Casa Lavanda é – sim, você adivinhou – pintada de lavanda e fica a uma pequena caminhada da Casa Verde. A diretora médica, Angela, conversou conosco sobre os serviços de emergência oferecidos lá.

Quando uma ambulância é despachada da Casa Lavanda, há um motorista, uma enfermeira e um técnico médico de emergência a bordo.

Atualmente, empregamos 12 motoristas, 21 enfermeiros e 16 paramédicos, com três ambulâncias equipadas com medicamentos e uma ambulância de suporte à vida.

Examinando os números

Desde a abertura do projeto, em setembro de 2014, até a nossa visita no final de julho de 2019, a equipe do call center atendeu um total de 29.788 ligações, com uma média de 600 a 700 ligações por mês.

Uma avaliação inicial é feita no local para determinar se a ambulância deve transferir o paciente para a Casa Lavanda ou direto para o Hospital Mama Lucy.

Dos casos emergenciais atendidos pela Casa Lavanda durante esse período, 45% estavam relacionados à piora aguda de condições crônicas, por exemplo, HIV ou tuberculose; 35% à violência e acidentes; 13% à maternidade; e 7% a lesões ou doenças autoinfligidas.

Esses números não levam em consideração a violência sexual, pois esses casos vão diretamente para a clínica de violência sexual e de gênero.

A clínica de violência sexual e de gênero atende cerca de 400 novos pacientes por mês, alguns vindos diretamente da sala de emergência.

É de partir o coração que 50% dos casos de violência sexual atendidos são menores de 18 anos de idade, com metade desses com menos de 12 anos de idade. Da mesma forma, aprendemos que apenas 8% dos casos são homens; só temos condições de receber os casos mais graves, como casos de estupro coletivo.

Ainda existe um grande estigma associado à violência sexual contra homens, e MSF está trabalhando para tentar aumentar a conscientização sobre isso, principalmente entre os alunos do ensino médio.

Cuidando de sobreviventes de violência

Ao chegar à clínica, os sobreviventes de violência sexual e de gênero passam uma hora com o clínico e uma hora com o conselheiro.

Os médicos levarão as roupas do paciente para análise forense, indicarão local para banho e fornecerão produtos de higiene pessoal, toalhas e uma muda de roupa. As mulheres também recebem a pílula de emergência e são testadas para DSTs e hepatite B, seguidas de testes de gravidez e HIV dois meses depois.

O conselheiro então pede que os pacientes conversem sobre o que aconteceu – o mais importante é que esse é o único momento em que serão solicitados a fazê-lo – e depois define um cronograma de acompanhamento.

Os conselheiros contam que o acompanhamento pode ser um desafio, especialmente dada a posição socioeconômica de muitos dos sobreviventes, para quem voltar pode significar perder o salário de um dia. Para resolver isso, as consultas médicas são combinadas com o aconselhamento, no entanto, apenas cerca de 40% dos pacientes completam cinco consultas ao longo de um período de três meses.

A clínica oferece refeições para os pacientes enquanto eles aguardam consultas e pode abrigar pacientes temporariamente, principalmente mulheres e crianças que chegam tarde da noite quando os profissionais não acham seguro voltar para casa.

No entanto, a clínica não está licenciada como abrigo 24 horas. Existe uma assistente social, Juma, que trabalha ao lado de agências parceiras apropriadas, que podem fornecer cuidados complementares, especialmente nos casos em que os autores são membros da família, e agências legais para casos que vão a tribunal.

Conhecendo os psicólogos

No final de nossa visita ao centro, conversamos com Mercy e Ann, dois dos psicólogos.

Entre os pacientes que atendem, estão crianças com menos de 5 anos de idade, refugiados, sobreviventes de ataques repetidos, sobreviventes de incesto e pessoas com doenças mentais.

Cerca de 40% dos casos são graves, incluindo mulheres que desejam interromper a gravidez, pessoas com pensamentos suicidas, sobreviventes de estupro coletivo e pessoas que sofreram violência sexual sob ameaça de armas, como revólveres.

É realmente angustiante que esses casos constituam uma proporção tão alta do total recebido pelo centro.
Ficou claro desde os nossos primeiros dias em Mathare como o trabalho de MSF evoluiu para atender às necessidades das populações vulneráveis. Foi impressionante conhecer uma equipe tão dedicada e apaixonada que se esforça para atendê-las.”

 

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