Desafios à ação humanitária: o impacto das respostas políticas e militares às crises

Em uma apresentação no Instituto Real de Assuntos Internacionais em Londres, Jean-Herve Bradol, presidente de MSF na França, diz que a ação humanitária não pode estar submetida à agenda política e militar.

Por Jean-Hervé Bradol

27/05/2004 – Esta apresentação visa oferecer um panorama das intervenções humanitárias nos últimos cinco anos.

Os países do ocidente realizaram três intervenções militares em países em conflito entre 1999-2000 (Kosovo, Timor Leste e Serra Leoa) em nome da defesa da segurança coletiva e dos direitos humanos. Esta predileção por ações militares em defesa de “valores” tanto quanto de interesses, foi intensificada após 11 de setembro de 2001.

Uma combinação de humanismo universal e segurança nacional foi usada para justificar a intervenção liderada pelos EUA no Afeganistão e no Iraque.

Somos levados a acreditar que ética e política se reconciliaram nas iniciativas de uma série de países, que agora consideram a defesa das liberdades fundamentais em todo mundo um componente essencial dos seus interesses nacionais.

No início de 2002, Paul Wolfowitz, Secretário de Defesa dos EUA, disse: “Se as pessoas forem liberadas para governar seus países conforme suas vontades, estaremos lidando com um mundo bastante favorável aos interesses americanos”. Episódios como este parecem oferecer esperança a populações sujeitas às mais violentas formas de opressão.

Os apelos bem intencionados de organizações humanitárias aos políticos para que assumam suas responsabilidades, abandonem a questão política e ponham um fim às freqüentes violações dos direitos humanos, parecem ter sido ouvidos. No entanto, a determinação dos EUA na sua ‘guerra contra o terrorismo’ de exportar a doutrina dos direitos humanos e a democracia usa a força armada, desrespeitando as leis internacionais, se necessário.

Resumindo, somos, supostamente, testemunhas do surgimento de uma consciência moral universal que mobiliza as energias de todos em favor da melhora contínua das condições humanas – sob a bandeira das Nações Unidas para alguns e dos EUA e das forças de coalizão para outros.

As questões mais relevantes do ponto de vista humanitário são: até que ponto a proliferação das chamadas guerras “justas” e o recente entusiasmo por valores éticos e humanitários beneficia as populações expostas à violência em massa? E qual tem sido a resposta prática internacional às crises mais graves dos últimos cinco anos surgida do discurso baseado no “direito de intervir”e na “Guerra contra o Mal”?

Médicos Sem Fronteiras vem tentando responder essas questões revisando as lições aprendidas das mais graves crises dos últimos cinco anos, incluindo Angola, Sudão, Afeganistão e Iraque.

Os defensores de uma nova ordem política, bem como aqueles que defendem as já existentes, não negam que algumas pessoas são sacrificadas, mas justificam esse sacrifício em nome de um futuro melhor ou da preservação dos benefícios da civilização – “não se pode fazer um omelete sem quebrar ovos”. Mas a lógica de uma receita culinária não deveria ditar a extinção prematura de uma parte da humanidade.

Ações humanitárias, como entendemos, desafiam a lógica que justifica a inevitável e prematura morte de uma parte da humanidade em nome de um hipotético bem coletivo. Essas mortes são realmente necessárias? Esta é a questão que nós sistematicamente fazemos às forças políticas.

Em outras palavras, a ação humanitária é dedicada primeiramente àqueles cujo direito de viver esbarra na indiferença ou na hostilidade aberta de outros. Logo, se a ação humanitária deve ser consistente, irá inevitavelmente se chocar contra a ordem estabelecida.

A comunidade internacional não pode ignorar conflitos armados contemporâneos. As suas ramificações internacionais são ampliadas neste período da história que é marcado pelo rápido crescimento de todo tipo de troca – seres humanos, idéias e produtos. Intervenções internacionais estão se multiplicando em resposta a essas guerras, e têm um papel importante na regulação de conflitos e nas suas conseqüências humanas.

O fim da guerra fria reavivou a idéia de um sistema político internacional capaz de prever guerras, conduzir negociações, mediar as forças beligerantes, e muitas vezes impor a paz e a justiça pela força. Em quatro anos – entre 1988 e 1992 – as Nações Unidas iniciaram tantas operações militares internacionais quanto nas quatro décadas anteriores.

Esta tendência permanece. Intervenções militares internacionais estão se tornando mais numerosas e ambiciosas, embora essa forma de resposta internacional às graves crises ainda represente uma exceção ao invés de uma regra.

Quando uma coalizão internacional considera o uso da força em território pertencente a Estado soberano e suas conseqüências para as ações humanitárias, existem três tipos de intervenção.

Intervenção: o uso de força armada contra uma das partes do conflito seguido de uma administração internacional do território liberado. É conduzida sob a bandeira da segurança coletiva e moral universal num contexto – com exceção do caso do Iraque – de violência excessiva contra a população civil. Uma ação humanitária de forma intensa que legitima a guerra e os crimes cometidos durante a intervenção acompanha esta operação.

Envolvimento: envolvimento diplomático e humanitário que atende formalmente às necessidades humanitárias, preocupações que afetam as operações de ajuda em agendas políticas (normalmente uma política parcial que visa manter o conflito dentro de limites aceitáveis).

Abstenção: caracterizado pela indiferença internacional à extrema brutalidade de certos conflitos. Para os mais fortes, isso representa uma licença para matar.

Esses três tipos de reação internacional a crises têm um impacto significante, mas diferente nas ações de organizações humanitárias e afetam a sobrevivência da população.

É verdade que a maioria das organizações de ajuda humanitária está sob o controle dos países mais poderosos, seja de forma direta (cooperação bilateral, sociedades da cruz vermelha) ou indireta (agências das ONU, organizações privadas controladas por meio de apoio financeiro e proximidade ideológica dos seus líderes).

Conclusão: um breve argumento pela arte de viver

Longe da ilusão de que a humanidade está progredindo inexoravelmente em direção a uma sociedade ideal, os atores humanitários podem de fato resistir às tentações mais humanas de aceitar a morte como parte da nossa comunidade global para que o ‘bem comum’possa prevalecer. O fracasso repetido de operações de ajuda é devido, em grande parte, à esta ‘aliança’ – que, em realidade, é a submissão das preocupações humanitárias às agendas políticas.

As razões para esta aliança, que a cada ano impede o acesso de centenas de milhares de pessoas à ajuda que pode salvar vidas são:

– Econômica (acesso a financiamentos governamentais para organizações de ajuda)
– Ideológica (a atração de uma moral universal hipotética)
– Burocrática (a defesa do sistema de ajuda dos seus próprios interesses e das sub-culturas).

Mas todos esses fatores contribuem para aliar a ação humanitária aos interesses políticos e desviá-la das suas responsabilidades – que é salvar o maior número possível de vidas.

Quando as operações de ajuda humanitária perdem de vista seus objetivos, elas não são apenas ineficientes para as pessoas que necessitam, mas se envolvem na produção da violência política, agravando as conseqüências humanas que deveriam, na sua essência, aliviar. Diante do poder e da violência de alguns protagonistas políticos, a luta é desigual e as derrotas são freqüentes por parte da ação humanitária que por natureza defende a paz.

Nenhuma ilusão de uma sociedade futura ideal irá mudar este fato, mas a ação humanitária pode ainda se opor à eliminação de parte da humanidade agindo de forma independente, ou dentro da sua agenda, baseada nas necessidades humanas. Mais independente dos Estados poderosos, a ação humanitária poderia ser mais eficiente.

A crise nutricional em Angola em 2002 nos oferece um exemplo. Médicos Sem Fronteiras conseguiu salvar 20 mil pessoas da fome por meio de operações de ajuda humanitária. Mas dezenas de milhares morreram de fome porque para os líderes mundiais, agências humanitárias da ONU, sociedades da Cruz Vermelha, a maioria das Ongs e da imprensa, a emergência estava, naquela época, em outro lugar.

Hoje, centenas de milhares de pessoas em Darfur continuam sem ajuda humanitária. A comunidade internacional levou meses para perceber que um conflito estava acontecendo em Darfur porque a prioridade era envolver o governo do Sudão num processo de paz. Enquanto isso, civis em Darfur eram alvo da violência. Milhares morreram e centenas de milhares foram obrigadas a fugir de suas casas.

Médicos Sem Fronteiras está oferecendo ajuda tanto para os refugiados que cruzaram a fronteira com o Chade quanto para os deslocados internos de Darfur. No entanto, apesar do crescente interesse político e da imprensa que vem gerando um maior acesso, a ajuda humanitária que chega a Darfur permanece completamente insuficiente para atender as necessidades.

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