Crise de refugiados rohingyas: feridas invisíveis precisam ser curadas

Atendimento de saúde mental é essencial para apoiar os sobreviventes em Bangladesh

Crise de refugiados rohingyas: feridas invisíveis precisam ser curadas

Um alto-falante da mesquita em Jamtoli ganha vida em uma hora não programada. Em vez do chamado do meio-dia para a oração, um sacerdote pede que seus ouvintes prestem atenção às suas ansiedades diárias e busquem ajuda no centro de saúde primária de MSF, nas proximidades.

“A comunidade confia em mim, acredito que os programas de saúde mental são necessários para a paz de espírito de todos”, diz Sayeed Abdul Majeed*.

Quase todos os ouvintes de Majeed são refugiados rohingyas que fugiram da violência contra eles no estado de Rakhine, Mianmar, em agosto de 2017. Antes de fugir para a segurança em Bangladesh, muitos refugiados sofreram diretamente ou testemunharam uma violência significativa e muitos perderam familiares próximos. Nos acampamentos, eles vivem em abrigos improvisados e superlotados, sem comida, água potável ou banheiros. Suas vidas estão em suspenso, seu futuro é incerto.

“Estamos vendo cada vez mais novos casos de ansiedade e depressão generalizada”, diz Pooja Iyer, psicóloga de MSF nos centros de saúde de Jamtoli e Hakimpara. Embora as feridas físicas possam ter sarado, as memórias de violência e perda de familiares por morte ou separação ainda estão vivas.

Dois anos depois, as necessidades de saúde mental evoluíram. Memórias traumáticas combinadas com desemprego, ansiedade sobre o futuro, más condições de vida e pouco ou nenhum acesso a serviços básicos, como educação formal, deixam os rohingyas vulneráveis a danos psicológicos no longo prazo.

Lacunas de saúde mental

Quase 450 pacientes procuram aconselhamento em saúde mental apenas nas unidades de saúde de Jamtoli e Hakimpara. A prevalência de psicose crônica – um distúrbio mental grave que requer tratamento psicotrópico – é alta entre os pacientes de MSF. Quando os gêmeos rohingyas, de 17 anos de idade, Abdul Hasim e Abdul Halim chegaram ao centro de saúde de Jamtoli, eles se comportavam como crianças e estavam desconectados da realidade. Pensamentos desorganizados, vendo ou ouvindo coisas que não estão presentes e comportamentos como os exibidos pelos gêmeos são sinais típicos de psicose.

Muitos pacientes de MSF se queixam de pesadelos e flashbacks. Agressividade, tendências suicidas, delírios e dependência de substâncias também são comuns. Os psicólogos de MSF dizem que são sintomas de trauma e sofrimento não resolvidos. Muitos pacientes têm transtorno bipolar, esquizofrenia ou outras psicoses e dificuldades psicológicas ligadas à epilepsia.

No início do influxo de 2017, o apoio psicossocial foi fundamental para ajudar os sobreviventes a lidar com o trauma de sofrer violência extrema. Hoje, o atendimento psiquiátrico, combinado com o apoio psicossocial, é essencial para aliviar as condições de saúde mental prevalecentes no campo. Continua sendo uma lacuna não tratada. Aumentar os serviços abrangentes de saúde mental no longo prazo implica recursos e pessoal adicionais para avaliar a verdadeira extensão dos problemas de saúde mental. A resposta precisa de psiquiatras treinados que possam diagnosticar e prescrever medicamentos para tratar distúrbios mentais graves.

Outra lacuna são os serviços para crianças com dificuldades de desenvolvimento, neurológicas ou de aprendizado.
“Temos pacientes com paralisia cerebral, déficit de atenção com hiperatividade e distúrbios do espectro do autismo que não podem frequentar uma escola regular ou um centro de aprendizado, pois são provocados e intimidados”, diz Iyer. “Eles sofrem em silêncio.”  

As instalações de saúde de MSF em todo o distrito de Cox’s Bazar, que cobre 2.492 quilômetros quadrados, visam apoiar as estruturas de saúde locais para atender às crescentes necessidades dos pacientes. Enquanto a maioria dos pacientes de MSF é rohingya, serviços abrangentes de saúde mental também estão disponíveis para os cidadãos de Bangladesh.

Estigma social duradouro

Entre as duas comunidades, a saúde mental permanece pouco compreendida. A maioria dos pacientes nas unidades de saúde de MSF exibe sinais visíveis de estresse e trauma psicológico. Muitos outros sofrem de depressão, transtorno de estresse pós-traumático, esquizofrenia e psicose, que passam praticamente despercebidos por sua comunidade.

Dizem que pacientes com sinais visíveis de sofrimento psicológico estão possuídos ou sob a influência da magia negra. A comunidade rohingya, excluída da assistência médica por décadas em Mianmar, costuma recorrer a curandeiros tradicionais devido à afinidade e crenças culturais ou à falta de confiança nos profissionais de saúde no campo.

“Muitos pacientes são encaminhados para conselheiros de saúde mental apenas quando procuram tratamento médico para doenças físicas em nossas unidades de saúde”, diz Tanya Morshed, psicoterapeuta de MSF e assistente social clínica. Ela é responsável por fortalecer as atividades de conscientização em saúde mental entre as comunidades nos campos de Kutupalong e Balukhali.

“Pacientes psiquiátricos que exibem comportamento agressivo geralmente são acorrentados devido a medos e conceitos errôneos sobre doenças mentais. Negligenciar as necessidades básicas de comida e limpeza, assim como o isolamento, pode resultar em uma deterioração adicional de sua condição”, diz Morshed.

Os mais vulneráveis, segundo Morshed, são os que sofreram violência sexual, em Mianmar ou nos campos de refugiados de Cox’s Bazar. Para MSF, a violência sexual é uma emergência que requer atenção médica imediata. O estigma em torno dela, aumenta o risco de danos psicológicos a longo prazo. Morshed diz que crianças nascidas de estupro são frequentemente abandonadas e envergonhadas por sua própria comunidade.  

 “Precisamos prestar atenção às consequências intergeracionais dessa crise”, acrescenta ela.

Construindo confiança

O isolamento e a solidão dos pacientes são outro desafio para as equipes de saúde mental de MSF. Sua incapacidade de entrar em contato com suas famílias em Cox’s Bazar ou em Mianmar devido a restrições de movimento ou telecomunicações pode piorar as condições existentes.

As equipes de MSF enfrentam o estigma e o isolamento encontrados pelos pacientes, criando confiança e solidariedade por meio de atividades de psicoeducação. Educadores comunitários de saúde mental (CMHEs) com afinidades culturais e religiosas semelhantes são fundamentais para criar confiança e conscientização da saúde mental entre pacientes, cuidadores e líderes comunitários.

Pacientes e famílias frequentemente abandonam o tratamento de saúde mental, pois o aconselhamento e a medicação podem levar tempo para fazer efeito. Os CMHEs ajudam a garantir que os pacientes continuem com a medicação e acompanhem as sessões psicossociais. As equipes de saúde mental, compostas por CMHEs, conselheiros, supervisores psicólogos e psiquiatras, garantem que cada paciente tenha um plano de tratamento especializado.  

O alto-falante da mesquita Jamtoli soa novamente. O sacerdote Majeed repete sua mensagem, otimista de que as pessoas sigam seus conselhos. Pacientes, prestadores de cuidados, líderes comunitários e equipes de MSF estão juntos para garantir que o trauma e aLI privação não definam a vida daqueles que buscam assistência médica em Cox’s Bazar. Mas há esperança?

“A maioria dos meus jovens pacientes tem medo de homens de uniforme, pois testemunharam a violência perpetrada pelo exército ou pela polícia de Mianmar”, diz Iyer. “Quando as crianças melhoram, elas são capazes de contar suas experiências sem tremer ou urinar nas roupas. Isso não é esperança?”

MSF oferece assistência médica abrangente, incluindo atendimento psiquiátrico, em todas as nossas instalações em Cox’s Bazar. Entre agosto de 2017 e setembro de 2019, realizamos 38.904 consultas individuais e 55.170 em grupo. Além disso, em colaboração com o Ministério da Saúde e Bem-Estar Familiar (MoHFW), estabelecemos serviços de saúde mental no Complexo de Saúde Ukhia Upazilla desde meados de 2017. É uma das primeiras instalações do MoHFW com atividades descentralizadas de saúde mental em um complexo de saúde. Aqui, os conselheiros de MSF examinam os pacientes quanto a problemas de saúde mental, oferecem sessões de aconselhamento individual e em grupo e encaminham casos graves ao nosso hospital no campo Kutupalong.

* Nome alterado a pedido da pessoa

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