“Crianças com doenças crônicas não são a maioria dos nossos pacientes, mas elas existem e precisam da nossa atenção”

Diretor médico-adjunto de MSF fala sobre a importância de oferecer cuidados a doenças pediátricas não transmissíveis

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“Crianças com doenças crônicas não são a maioria dos nossos pacientes, mas elas existem e precisam da nossa atenção”

Quais são as doenças pediátricas não transmissíveis (DNT)?

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, estima-se que 7 em cada 10 mortes no mundoi são devido a doenças não transmissíveis (DNT). Mais de 80% delas ocorrem em países de baixa e média renda. Embora “apenas” 4% das mortes sejam de pessoas com menos de 30 anos, a maioria das mortes em adultos está ligada a condições ou comportamentos na infância ou adolescência, como tabagismo, falta de exercício, má nutrição ou consumo excessivo de álcool.

Para além disso, existem doenças crônicas que ocorrem na infância e afetam o bem-estar e a vida das crianças. Doenças como cardiopatia reumática, cardiopatia congênita, diabetes tipo 1, asma, câncer específicos – como leucemia e linfomas –, epilepsia e doenças do sangue – como talassemia ou doença falciforme. Além disso, de 10 a 20% das crianças e adolescentes vivenciam algum tipo de transtorno mental.

O termo “doenças não transmissíveis” é um pouco ilusório, porque sugere que elas não têm origem infecciosa. Isso pode ser verdade para muitas das doenças de que estamos falando, mas não para todas. Quando falamos de DNTs, muitas vezes nos referimos a doenças crônicas, independentemente da origem. Elas são caracterizadas por sua duração.

Por que o tema das doenças não transmissíveis pediátricas está surgindo agora no contexto da resposta humanitária?

Nos países em desenvolvimento, o grande desafio em relação às doenças crônicas é que são contextos onde os sistemas de saúde geralmente não estão preparados para lidar com elas. Particularmente na pediatria, muitas vezes, os sistemas de saúde estão sobrecarregados com doenças agudas como malária, infecções respiratórias ou diarreia, e já lutam para lidar com isso. Frequentemente, não há modelos para responder a doenças crônicas em tais contextos. Este desafio já foi evidenciado ao tentar responder ao HIV, por isso não é novo.

Sem uma resposta de saúde, a doença crônica ainda existe, mas é menos visível.

Em uma emergência, mais uma vez, as necessidades muitas vezes parecem enormes, e MSF deve primeiro trabalhar para evitar a morte e o sofrimento causados diretamente por essa situação. Mas, rapidamente, temos que avaliar o que a população quer e quais são suas necessidades gerais de saúde para além da emergência. Isso inclui cuidados a doenças crônicas e a continuidade dos cuidados que, em alguns casos, estavam disponíveis antes da emergência. Quando começamos a trabalhar com refugiados sírios no Líbano, por exemplo, comunicamos rapidamente que o tratamento de doenças crônicas constituía uma grande parte do que essa população realmente precisava.

Em conflitos e emergências, quando a prioridade parece ser salvar vidas, como podemos integrar as doenças pediátricas não transmissíveis em nossa resposta humanitária?

É verdade que, ao decidir onde investir o tempo, a energia e o dinheiro de MSF, há prioridades conflitantes com as doenças que matam imediatamente. Por exemplo, no Sudão do Sul, atualmente, tratamos 48 crianças com diabetes, mas o que mata exponencialmente mais crianças no país não é diabetes, mas malária, doenças respiratórias, diarreia etc. Em comparação, as mortes por diabetes são minúsculas, mesmo que toda criança que tenha diabetes tenha 100% de chance de morrer se não for tratada. Então, por que devemos investir muito em diabetes?

Na verdade, você poderia argumentar que a diabetes e outras doenças crônicas que afetam crianças são doenças negligenciadas. Assim, neste programa no Sudão do Sul, por exemplo, a grande discussão tem sido: devemos tratar crianças com diabetes se não soubermos que cuidados receberão a longo prazo?

Devemos deixar a criança que chega em coma diabético morrer, embora tenhamos insulina, mesmo que não saibamos como fornecer cuidados de qualidade a longo prazo? A criança pode sofrer complicações como cegueira em poucos anos – a diabetes leva a muitas complicações se você não controlá-la corretamente. Ou devemos dar à criança a chance de sobreviver e investir recursos na busca de melhores modelos de cuidado, e talvez um dia ela ou ele tenha sorte de ter acesso a melhores cuidados?

Quais são os desafios para incluir cuidados a doenças pediátricas não transmissíveis em projetos de MSF?

Como mencionado acima, não vemos muitos modelos de cuidados crônicos integrados funcionais nos países em desenvolvimento, incluindo a continuidade necessária de atendimento, e isso é particularmente deficiente em ambientes rurais pobres. Frequentemente, não há conscientização sobre doenças crônicas, nem pelo paciente nem pelo cuidador, nem pelo profissional de saúde. Ou, quando a doença passa a ser óbvia, ela geralmente já evoluiu e não há conhecimento de como tratá-la. A maioria dos profissionais de saúde nunca foi treinada em doenças crônicas.

Há também um grande problema com o acesso a medicamentos adequados. Tratar crianças com doenças crônicas significa disponibilidade de medicação específica de acordo com a idade e adaptada às condições climáticas (calor). Há uma questão de custo e, claro, de qualidade e oferta sustentável.

O encaminhamento para níveis mais altos de cuidados muitas vezes não é viável ou acessível, e é questionável se esse cuidado seria de algum modo útil.

Em geral, devido à falta de experiência no terreno, a elaboração de uma resposta viável requer recursos adicionais. Portanto, precisamos ser inventivos e pensar em como podemos equipar nossas equipes para responder de maneira eficiente a essas doenças, mas de uma maneira “simplificada”. Em locais com muitos recursos, geralmente temos muitos especialistas e, embora os medicamentos possam ser caros, eles geralmente estão disponíveis e os sistemas de apoio necessários, como a educação, estão lá. Em MSF não é possível enviar todos esses especialistas para nossos programas, por isso precisamos encontrar bons modelos de atendimento com protocolos simplificados e apoiar por meio de outros canais, como a telemedicina.

Além disso, para tratar com sucesso as doenças crônicas, o paciente e/ou o cuidador precisa entender e desenvolver a propriedade de como lidar com a doença. Isso requer educação do paciente, que deve ser adaptada à idade e ao paciente. No geral, MSF ainda está muito longe disso.

Se a MSF decidir se envolver ainda mais, pode ter um grande papel a desempenhar aqui: identificar as lacunas, encontrar melhores soluções adaptadas e pressionar por elas.

i https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/noncommunicable-diseases

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