Corte de financiamento prejudica acesso à saúde de mulheres e crianças na Somália

Medida levou ao fechamento de pelo menos 37 centros de saúde e nutrição na cidade de Baidoa, onde MSF apoia hospital

Radhwa e seu irmão na ala pediátrica do Hospital Regional da Baía, apoiado por MSF. Meninas como Radhwa viajam longas distâncias com suas famílias para ter acesso a cuidados médicos gratuitos. ©Hareth Mohammed/MSF

Apenas 10 dias após dar à luz gêmeos em casa, no distrito de Diinsoor, Somália, Aisha* começou a sangrar, com hemorragias graves e potencialmente fatais. Sua família temeu o pior.

O hospital onde ela havia realizado o parto de seus filhos mais velhos não estava mais funcionando. Com cuidados de saúde limitados na comunidade local, o marido pediu dinheiro emprestado e dirigiu por cinco horas durante a noite para chegar ao Hospital Regional da Baía, apoiado por Médicos Sem Fronteias (MSF), em Baidoa, uma das poucas instalações que oferecem cuidados maternos e pediátricos gratuitos e de qualidade na região. As equipes médicas estabilizaram rapidamente Aisha, tratando com sucesso o quadro.

O pouco acesso aos cuidados de saúde faz com que os pacientes cheguem aos hospitais com complicações graves, resultando, por vezes, em mortes maternas e neonatais evitáveis. A insegurança, a escassez de serviços médicos e os desafios logísticos dificultam ainda mais o acesso a cuidados em tempo hábil.

Precisamos de um hospital na nossa região e de médicos que possam vir até nós.”

Hawa*, mãe de dois filhos, paciente em hospital apoiado por MSF

Normas culturais, como a exigência do consentimento masculino para intervenções cirúrgicas, acrescentam atrasos críticos quando é necessária uma ação imediata. Além disso, os comportamentos de procura de cuidados de saúde apresentam desafios significativos.

Histórias como a de Aisha são muito comuns no estado do Sudoeste da Somália, onde mulheres e crianças muitas vezes viajam centenas de quilômetros em busca de cuidados médicos. As pessoas que não têm condições financeiras para pagar a viagem enfrentam sérias consequências.

Hawa*, mãe de duas crianças, deu à luz seu primeiro filho em casa, com apenas familiares presentes.

Não temos hospitais nem médicos por perto”, explica ela. Após o segundo parto, Hawa teve complicações graves, incluindo inchaço e problemas cardíacos. Determinada, viajou para Baidoa para receber tratamento. Agora em recuperação, ela expressa uma esperança comum: “Precisamos de um hospital na nossa região e de médicos que possam vir até nós”.

Vários fatores dificultam o acesso aos cuidados de saúde. A pobreza, a insegurança, a distância e as barreiras culturais atrasam significativamente o tratamento.

Mulheres dirigem-se à entrada da triagem materna no Hospital Regional da Baía, apoiado por MSF. A unidade funciona como o principal centro de referência para cuidados maternos no estado do Sudoeste da Somália. ©Hareth Mohammed/MSF

Hassan, de 28 anos, pai e morador do vilarejo de Afurow, perdeu tragicamente a esposa durante o parto, realizado em casa, por causa da falta de instalações de saúde e profissionais médicos qualificados.

Sozinho com um filho recém-nascido que logo ficou gravemente doente, Hassan fez o que pôde. “Ele tinha diarreia e vômito. Os medicamentos das farmácias locais não ajudavam”, recorda Hassan. Após dois meses de piora da saúde do filho, soube dos serviços gratuitos de MSF em Baidoa.

“Pedi emprestado cerca de 130 dólares e viajei 150 km para chegar ao hospital de Baidoa”, lembra ele. O que começou como uma situação desesperada transformou-se em esperança, uma vez que o seu filho passou a receber tratamento e cuidados nutricionais.

MSF apoia o Hospital Regional da Baía desde 2017, oferecendo cuidados obstétricos, neonatais, pediátricos e nutricionais de emergência. Só em 2024:

• Tratamos mais de 14 mil crianças com desnutrição;
• Realizamos mais de 38 mil consultas pediátricas;
• Demos assistência a mais de 2.800 partos;
• Realizamos aproximadamente 35 mil consultas de saúde reprodutiva.

Todos os serviços são fornecidos gratuitamente. No entanto, apesar desses esforços, a situação de saúde materno-infantil na região continua crítica, especialmente após os recentes cortes no financiamento.

Mãe e filho, que está com desnutrição, no Hospital Regional da Baía, apoiado por MSF. Muitas crianças chegam em estado crítico devido ao atraso no acesso aos cuidados médicos. ©Hareth Mohammed/MSF

 

Suspensão de ajuda externa fechou 37 unidades médicas

A suspensão do financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID – sigla em inglês) levou ao fechamento de pelo menos 37 centros de saúde e nutrição em áreas rurais e urbanas na cidade de Baidoa.

Consequentemente, o número de pacientes nas instalações restantes, como o Hospital Regional da Baía, aumentou drasticamente, sobrecarregando um já frágil sistema de saúde.

De janeiro a junho de 2025, as equipes de MSF no Hospital Regional da Baía trataram 11.894 crianças com desnutrição, um aumento de 76% em relação ao mesmo período do ano passado.

• Leia também: na Somália, seca e falta de financiamento agravam a crise de desnutrição

Esse crescimento significativo nas admissões por desnutrição, juntamente com o aumento dos casos de complicações na saúde materna, ressalta a necessidade urgente de financiamento sustentável e eficiente para restaurar e expandir os serviços essenciais, especialmente nas comunidades rurais desassistidas.

Muitas vezes, os pacientes chegam até nós em estado crítico simplesmente porque não há serviços de saúde disponíveis por perto.”

 

Pitchou Kayembe, coordenador do projeto de MSF na Somália

As famílias frequentemente adiam a procura por assistência médica até que as condições piorem, muitas vezes recorrendo inicialmente a métodos tradicionais de cura.

Conceitos equivocados em torno da vacinação, como crenças que a associam à infertilidade ou outras doenças, limitam ainda mais o acesso aos cuidados preventivos.

A educação contínua em saúde e o envolvimento da comunidade são essenciais para construir a confiança nos serviços médicos e incentivar a procura por cuidados.

“As mortes maternas e neonatais podem ser evitadas garantindo que as mulheres grávidas tenham acesso a cuidados mais próximos de casa. Muitas vezes, os pacientes chegam até nós em estado crítico simplesmente porque não há serviços de saúde disponíveis por perto”, diz Pitchou Kayembe, coordenador do projeto de MSF na Somália.

Embora MSF continue prestando cuidados essenciais, é vital um apoio substancial mais amplo. “A escala da necessidade exige investimento sustentado e de longo prazo e apoio estratégico em toda a Somália. Instamos às instituições doadoras e parceiros humanitários a priorizar a expansão dos cuidados de saúde materna e pediátrica primários e de emergência, especialmente em áreas remotas.”

Nas alas movimentadas do Hospital Regional da Baía, recém-nascidos dão seus primeiros suspiros sob supervisão especializada, crianças com desnutrição recuperam gradualmente a saúde e mães assustadas encontram alívio e esperança.

Como conclui Kayembe, “não se trata apenas de responder a crises imediatas, mas de garantir que as famílias sobrevivam, se recuperem e reconstruam suas vidas, começando com cuidados de saúde dignos e de qualidade para todos.

*Nomes alterados para proteger a identidade

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