Conflito na região do extremo norte no Camarões

População convive com insegurança e acesso precário à saúde

Conflito na região do extremo norte no Camarões

O conflito na região do lago Chade eclodiu no nordeste da Nigéria há uma década. Desde então, espalhou-se pelos vizinhos Camarões, Chade e Níger, criando uma das maiores crises humanitárias da África.

Em grande parte esquecidas pela mídia, as pessoas na região do extremo norte de Camarões continuam a sofrer violência diária nas mãos de todas as partes em conflito, enquanto também enfrentam extrema pobreza em uma região sujeita a um clima imprevisível.

“Eles vieram e queimaram 56 casas. Mais de 600 animais foram queimados: bois, galinhas, cabras. Deixamos nossa comida para trás, tudo foi queimado e duas pessoas foram mortas. Percebemos que era impossível ficar. Foi assim que acabamos em Kourgui e outros em Mora”, conta Manuel*. Ele é um dos 42 agentes comunitários de saúde que trabalham com Médicos Sem Fronteiras (MSF) para oferecer cuidados básicos de saúde a pessoas em regiões fronteiriças de difícil acesso e inseguras entre o extremo norte de Camarões e a vizinha Nigéria. Há mais de um mês, ele testemunhou a fuga de mais de 2.500 moradores de seu vilarejo, após um ataque de homens armados.

“Foi difícil para nós, como foi na estação das chuvas”, diz Manuel. “Com nossas bicicletas e riquixás poderíamos escapar – mas para onde? No começo, ficamos ao relento. Quem tinha dinheiro procurava plástico no mercado para se cobrir; outros foram acolhidos pela população local e receberam abrigo.”

Sete pessoas feridas chegaram naquele dia ao hospital Mora.

“Depois disso, surgiu uma organização humanitária, mas não atendeu a todas as nossas necessidades”, diz Manuel.
O conflito na região do Lago Chade entre forças militares regionais e grupos armados não estatais continua, dia após dia, a ter um impacto devastador sobre as pessoas da região. “Os ataques e o deslocamento de pessoas não são mais da magnitude que eram entre 2014 e 2016, mas há uma insegurança contínua em uma região que já está entre as mais pobres do país”, diz Katrien Gedopt, coordenadora-geral de MSF em Camarões.

Em agosto de 2019, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) contabilizou mais de 270 mil pessoas deslocadas internamente e mais de 100 mil refugiados nigerianos no extremo norte de Camarões. Quase 80% dessas pessoas disseram que não tinham intenção de voltar para casa devido à falta de segurança.

A maioria das pessoas deslocadas no vilarejo de Manuel prefere viajar duas horas para trabalhar nos campos todos os dias, e duas horas à noite para retornar à área de Mora, o principal centro urbano da região, em vez de se instalar em seu vilarejo.

“Até mesmo ir aos campos é perigoso”, diz Manuel. “Se você for um pouco longe do vilarejo, [grupos armados] podem atacá-lo em plena luz do dia. Sempre vamos em grupos e há limites que não ultrapassamos. Também existem muitos campos abandonados, porque você não pode acessá-los.”

No hospital regional de Maroua, 60 quilômetros ao sul da cidade – onde MSF apoia o Ministério da Saúde no gerenciamento de casos cirúrgicos – Josua está se recuperando com a perna engessada e o ombro enfaixado. Algumas semanas atrás, ele foi atacado enquanto trabalhava nos campos ao redor de Maroua.

Nesse contexto de insegurança e em uma região agrícola pobre e sujeita a um clima semi-árido imprevisível, a população local e os deslocados internos lutam para sobreviver.

Yassoua Abba, que está desalojada há três anos em Kourgui, muito perto de Mora, diz: “[Quando me mudei], tive de me adaptar a uma nova vida em que você tinha que pagar por uma casa, madeira e até água, coisas que eu não fazia no meu vilarejo. Trabalho para outras pessoas e faço trabalhos domésticos para sobreviver.”

“Eu ganho 400 francos CFA por dia (cerca de 2,80 reais), mas isso não é suficiente para alimentar minha família adequadamente”, diz ela. “Normalmente, você deve comer três vezes ao dia, mas comemos uma vez ao dia porque não temos meios suficientes.”

Yassoua Abba não tem notícias do marido desde que teve de fugir de seu vilarejo e cuidar de seus seis filhos, um dos quais foi tratado por MSF por desnutrição aguda.

“Devido à insegurança, é difícil chegar aos campos, e isso significa que não posso me sustentar”, diz Jacqueline, outra moradora de Kourgui e mãe de cinco filhos. Um de seus filhos também foi tratado por MSF para desnutrição aguda, enquanto dois outros receberam tratamento para malária grave e outro para febre tifoide.

Além do contexto inseguro, muitas unidades de saúde da região fecharam ou apenas prestam serviços mínimos, forçando algumas pessoas a percorrer longas distâncias para alcançar cuidados de saúde. As precárias condições de vida também afetam a saúde das pessoas.

“As casas são mal isoladas e as pessoas não têm redes mosquiteiras”, explica Traore Nanamoudou, médico de MSF em Mora. “Às vezes eles decidem dormir no mato porque temem ser atacados à noite, o que os expõe a doenças como a malária, principalmente na estação das chuvas. É difícil para as pessoas de toda a região ter acesso à água potável, o que contribui para altas taxas de diarreia, principalmente entre crianças.”

Christian*, um agente comunitário de saúde de MSF na região, confirma. “As pessoas que vivem fora do centro da cidade não têm água corrente e até os poços estão danificados”, diz ele. “Há pessoas que defecam do lado de fora, o rio transporta tudo isso e as crianças acabam com diarreia porque bebem água do curso do rio.”

Oumi, uma menina de 3 anos de idade, é a queridinha de todos os profissionais do hospital regional de Maroua e anda pelos corredores visitando pessoas. Seu sorriso se tornou um símbolo do sentimento das pessoas nesta região.

Mais de um ano atrás, sua mãe ficou ferida na coluna quando se viu em meio a um fogo cruzado. Ela estava tentando fugir de seu vilarejo no nordeste da Nigéria devido à insegurança, em busca de refúgio do outro lado da fronteira, em Camarões. “Eles atiraram nela e ela está gravemente ferida. O tiro quebrou suas costas”, diz seu marido Mohammed.

Desde então, a mãe de Oumi permanece na cama, com as duas pernas paralisadas. Apesar dos cuidados prestados por MSF, ela não pode viver uma vida normal. O marido não tem escolha a não ser transformar o hospital em sua nova casa.
“Não tenho nada comigo, não tenho dinheiro”, diz ele. “Cuido da minha filha, que ainda é muito pequena, e da mãe dela e não há ninguém para me ajudar. Não posso ir a lugar algum e estou sempre pensando nelas. Há momentos em que não consigo dormir por causa de todos os pensamentos na minha cabeça”, diz ele.

Nos últimos quatro anos, MSF tem ajudado refugiados e pessoas deslocadas pelo conflito na região do lago Chade, bem como as comunidades anfitriãs vulneráveis pela insegurança.

Desde 2015, foram realizadas mais de 400 mil consultas gerais e mais de 17 mil cirurgias.

 

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