Condições de proteção de deslocados: a vida dentro e fora de um campo

Violência, falta de abrigo e condições insalubres: essa é a realidade dos deslocados internos no Sudão do Sul

Condições de proteção de deslocados: a vida dentro e fora de um campo

O cheiro de café doce com gengibre sendo preparado em uma pequena cabana consegue se sobrepor ao odor que emana do esgoto cheio de lodo. É o cheiro da vida. Ele permanece no ar e, de alguma forma, assim como as pessoas daqui, consegue superar as condições sufocantes do Complexo de Proteção de Civis.

Desde 2013, quatro milhões de pessoas foram deslocadas pelo conflito no Sudão do Sul. Dois milhões buscaram segurança além das fronteiras, enquanto outros dois milhões permanecem deslocados internamente. Durante alguns períodos mais extremos de violência, milhares de pessoas fugiram em números sem precedentes para as atuais bases das Nações Unidas (ONU) para proteção e, conforme o conflito se estendeu, essas bases passaram a ser Complexos de Proteção de Civis (PoC, na sigla em inglês) e são protegidas por forças da Missão da ONU no Sudão do Sul (MINUSS).

“Este foi morto, este está aqui ou este está procurando por você”

Desde a assinatura de um acordo de paz entre as partes em conflito, em setembro do ano passado, estão surgindo discussões sobre o retorno das pessoas deslocadas e o futuro dos complexos. Atualmente, cerca de 180 mil pessoas buscam segurança em seis desses campos no Sudão do Sul. Médicos Sem Fronteiras (MSF) está presente em dois – Bentiu e Malakal. Apesar das condições desafiadoras, para muitos, estar fora é pior.

“Quando meu vilarejo foi atacado, muitas pessoas foram separadas e as crianças fugiram até com outras famílias. Todos se dispersaram ou foram mortos. Quando chegamos aqui, só ouvíamos coisas como ‘este aqui foi morto, este está aqui ou este está procurando por você’”, diz Teresa de Mayendit, mãe de três filhos no PoC de Bentiu.

Distração e doença

Na frente de Teresa, duas cadeiras de plástico foram ocupadas e a música está tocando de um alto-falante amarrado a um arame. O alto-falante muda o ritmo do acampamento, caindo em ouvidos de adolescentes que talvez estejam escutando mensagens sobre esperança, amor ou, mais provavelmente, qualquer distração. No PoC de Bentiu, para as mais de 100 mil pessoas que vivem aqui, os desafios são muitos: segurança, comida, água, saúde e abrigo.

“Grandes concentrações de pessoas não são boas em termos de saúde. As pessoas não são alojadas adequadamente. Os abrigos ficam amontoados. Se uma pessoa no abrigo 1 está infectada por tuberculose e não conhece os sintomas, tememos que essa pessoa infecte todos os cinco abrigos. Sem as separações entre os abrigos, há um risco maior de contaminação”, diz Peter, pai de cinco filhos, que vive no PoC há cinco anos, apesar de ter vindo da cidade vizinha Rubkona.

MSF pediu repetidamente pela melhoria das condições e dos serviços dentro dos complexos, em particular, de água e saneamento. O transbordamento de latrinas escoa em uma lama espessa e estagnada, esperando pacientemente uma criança pequena para investigar e brincar. Os pequenos fazem o que crianças fazem, mas, neste ambiente, em vez de apenas brincar de bola com seus amigos, você corre o risco de contrair uma doença e tornar-se, desnecessariamente, parte das estatísticas alarmantes do local. Quase metade de todos os pacientes atendidos no ambulatório ou internados no hospital de 160 leitos de MSF no PoC de Bentiu são crianças com menos de cinco anos, muitos sofrem de doenças como diarreia aguda grave, doenças de pele, infecções nos olhos e vermes, que podem ser evitados com melhorias na água e no saneamento.

A relativa segurança encontrada dentro do campo é obtida às custas da exposição desnecessária a doenças que ameaçam a vida e de condições de vida indignas, ambos fatores que não motivam a decisão de uma pessoa de voltar para casa. 

Não há o suficiente de nada

Em Malakal, que era a segunda cidade mais populosa antes da guerra e uma das áreas mais afetadas, MSF também mantém um hospital dentro do PoC, onde cerca de 30 mil pessoas buscam proteção. Malakal passou pelas mãos de um grupo para outro várias vezes. A destruição ainda é visível, como se fosse nova. Destroços, carros incendiados e bairros vazios servem como um lembrete constante do passado recente.

“Ainda enfrentamos muitos desafios. Um é a fome; você pode ter grãos de sorgo, mas não sabe onde moê-lo ou pode não ter dinheiro para levá-lo ao moinho. Mesmo que você tenha dinheiro para moer o sorgo, talvez não tenha água para cozinhá-lo. Não há água suficiente; a comunidade é grande demais aqui”, diz Martha (nome alterado), uma mulher de 27 anos do leste do condado de Malakal.

Existindo para sobreviver

Esses acampamentos surgiram para que as pessoas pudessem sobreviver a situações de violência que estariam expostas fora deles. Mais de cinco anos depois, para algumas pessoas, qualificar sua existência pela mera sobrevivência é um pensamento deprimente. Ao longo de 2018, 51 pessoas que tentaram suicídio foram internadas no hospital de MSF no PoC de Malakal, marcando uma média de uma pessoa por semana. As equipes de MSF realizaram mais de 2.400 consultas de saúde mental, incluindo sessões individuais e em grupo, para pessoas com sintomas causados por níveis extremos de violência durante o conflito e sentimentos de desespero que são exacerbados por – ou uma consequência direta de – seu ambiente atual.

“A vida para todos, mas especialmente para as mulheres, é muito difícil. Esses cinco anos afetaram as pessoas. Elas estão infelizes, perderam muitas coisas quando tiveram que fugir de suas casas e houve muitas mortes na comunidade. Algumas pessoas têm doenças mentais e até dizem que seria melhor se matarem”, diz Achol, uma mulher de 32 anos de Obai, um vilarejo ao sul de Malakal.

Contexto volátil

Nossos pacientes dizem que movimentos temporários estão acontecendo dentro e fora de ambos os campos, mas as pessoas hesitam em se mudar prematuramente ou definitivamente devido à incerteza sobre sua segurança em um contexto que pode mudar rapidamente.

“O momento mais difícil que enfrentei foi quando cheguei ao PoC pela primeira vez. Também foi muito difícil quando o complexo foi atacado e queimado em 2016. Meu abrigo e tudo o que eu tinha dentro, incluindo minhas roupas, foram destruídos”, diz Achol, uma mulher de Obai, um vilarejo na margem oeste do rio Nilo, uma hora ao sul de Malakal.

A segurança dentro dos locais não é absoluta, com roubos, saques e violência sexual comuns sendo relatados pelos moradores. Para aqueles com empregos ou com uma fonte de renda, o risco de ser atacado é ainda maior.

Um dos nossos motoristas, que só saiu do campo em um veículo de MSF, diz: “Não há segurança no lugar de onde viemos. Estamos esperando até que a situação se acalme antes de irmos, mas, mesmo assim, pode não haver serviços para que as pessoas possam sobreviver em seus lugares de origem.”

Da mesma forma, David, um dos promotores de saúde de MSF, que também vive em um dos PoCs, diz: “Eu, que tenho um emprego, estou entre as pessoas mais visadas no PoC. Para onde posso correr? Nós não temos a escolha de sair, aqui ainda é melhor do que lá fora.”

Esperança para o futuro

Os mecanismos de defesa das pessoas para lidar com a situação foram sobrecarregados, mas, apesar dos muitos desafios que as pessoas enfrentam nos campos e dos sentimentos de incerteza sobre o futuro delas, há uma esperança inegável.

“Se nós testemunharmos a paz, então poderemos sair. Senão, é melhor ficar aqui, mas o que quero acrescentar é que todas as mulheres do Sudão do Sul, todas as pessoas do Sudão do Sul, esperam pela paz. Se houver paz, será bom”, diz Teresa.

Até lá, a vida nos campos continua. Falatório, mãos sendo lavadas, corações rezando, mulheres em busca de algo, crianças brincando, todos brigando, mas todos resilientes – sobrevivendo da maneira mais digna possível, em algumas das condições mais indignas imagináveis.

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