Coletando evidências em crises: como a coleta de dados é uma ferramenta indispensável para respostas médicas e humanitárias

Por Etienne Gignoux, diretor do Departamento de Epidemiologia e Aprendizagem, Epicentre

  • VOCÊ ESTÁ AQUI
  • Atualidades
  • Coletando evidências em crises: como a coleta de dados é uma ferramenta indispensável para respostas médicas e humanitárias
Abdallah A., promotor de saúde, recebe informações em frente à clínica de MSF no acampamento de tr. Chade, agosto de 2024.

Como parte de nossas atividades médicas e humanitárias, Médicos Sem Fronteiras (MSF) coleta uma grande quantidade de dados. Mesmo trabalhando em contextos com poucos recursos, ainda somos responsáveis por documentar rigorosamente nossas ações. A partir do momento em que um paciente chega, criamos um registro e o acompanhamos com um relatório detalhado da consulta. Caso necessite de internação, é aberto um prontuário médico. Esses registros são imprescindíveis para o acompanhamento dos pacientes, o monitoramento das atividades e a prestação de contas às autoridades locais e a nossos doadores. Também nos ajudam a medir a escala de nossas atividades, alocar recursos de forma eficiente e avaliar e melhorar a qualidade dos cuidados que prestamos. O centro epidemiológico dedicado de MSF, o Epicentre, onde trabalho, foi criado em 1986 com esse propósito. 

Em muitas situações de crise, MSF é frequentemente o único provedor de saúde para comunidades isoladas ou afetadas por conflitos. Esse acesso único traz consigo uma profunda responsabilidade. Além de dados de rotina, frequentemente precisamos coletar mais informações, para abordar questões médicas e humanitárias importantes. Nosso dever não é apenas tratar os pacientes, mas também gerar conhecimento que possa melhorar a situação. 

Esses dados ajudam a responder às principais questões da pesquisa: Quais são os fatores de risco para determinada doença? Qual é a eficácia de um novo tratamento ou vacina nos contextos em que atuamos? Eles também nos permitem quantificar a magnitude de um surto ou crise de forma objetiva e representativa. No entanto, coletar dados confiáveis e interpretáveis em condições extremas — como durante um surto de Ebola ou em uma zona de guerra ativa — é um desafio significativo. Vamos examinar dois exemplos em mais detalhes. 

Ebola na República Democrática do Congo 

Em 2018, surgiu um surto de Ebola no leste da República Democrática do Congo. Em poucos dias, MSF enviou dois epidemiologistas, Rebecca Coulborn e eu, para apoiar a resposta. Uma de nossas principais prioridades era estabelecer um sistema de coleta de dados de pacientes preciso e prático, que obedecesse aos padrões éticos e médicos. 

O sistema precisava ser abrangente o suficiente para descrever o surto e os pacientes afetados, mas também conciso e focado nas questões essenciais: idade do paciente, gênero, local de residência, sintomas e data de início, possíveis eventos de exposição, histórico de contatos, histórico de vacinação, resultados laboratoriais e evolução da doença. 

É ainda mais importante ser conciso, uma vez que as entrevistas são conduzidas por profissionais de saúde que usam equipamentos de proteção desconfortáveis, que só podem ser usados por período limitado. Os pacientes necessitam de atendimento rápido em ambiente de emergência, e os profissionais devem conciliar múltiplas prioridades, incluindo implementação do cuidado clínico, vigilância e rastreamento de contatos, e devem garantir que as unidades de saúde continuem operando para abordar outras necessidades sem se tornarem fonte de transmissão. 

Essa ferramenta de coleta de dados foi rapidamente adotada pelo Ministério da Saúde e implementada em todos os centros de tratamento de Ebola, melhorando o atendimento aos pacientes e fortalecendo os esforços de controle do surto. Após a epidemia, revisamos a consistência dos dados, corrigimos erros de inserção de dados e excluímos registros não confiáveis (p. ex., casos em que um paciente do sexo masculino foi erroneamente registrado como grávido). Esse conjunto de dados validado tornou-se um recurso inestimável para análises avançadas, fornecendo evidências da alta eficácia da vacina contra o Ebola em contextos de surto.1 Além disso, descobrimos que, mesmo quando administrada muito tarde para prevenir a infecção, a vacina ainda reduziu pela metade o risco de morte entre pacientes hospitalizados.2 

Guerra no Sudão 

O trabalho de nossos epidemiologistas não se limita aos surtos; eles também trabalham em crises humanitárias causadas por conflitos. Apesar de o conflito no Sudão ter se transformado em uma das piores catástrofes humanitárias do mundo, a cobertura midiática foi limitada, quando a guerra eclodiu em 2023. As equipes de MSF atuando no centro da crise ficaram profundamente abaladas com o sofrimento que testemunharam e se sentiram responsáveis por documentar a dimensão da catástrofe e o número de vítimas. Elas também precisavam avaliar as necessidades urgentes da população por cuidados médicos, alimentos, água e abrigo. 

Nessas situações, contamos com protocolos padronizados, que foram aperfeiçoados com base em experiência. Entrevistamos um membro adulto de cada grupo familiar em uma amostra representativa da população, perguntando sobre mortes em sua casa desde o início do conflito, episódios de violência, doenças recentes e condições de vida. Analisamos os registros de vacinação e utilizamos ferramentas simples para avaliar o estado de desnutrição das crianças. Mas como podemos realizar essas pesquisas no meio de uma guerra ativa? 

Garantir a segurança de nossas equipes é fundamental, e precisamos avaliar cuidadosamente se devemos priorizar a coleta de dados ou focar exclusivamente o atendimento médico urgente e a distribuição de ajuda humanitária. No Sudão, resolvemos esse dilema realizando entrevistas com famílias que fugiram do conflito e se tornaram refugiadas ou repatriadas no Chade. Essas entrevistas forneceram informações valiosas sobre suas experiências antes e durante deslocamentos, além de suas atuais condições de vida. 

As descobertas foram alarmantes: em uma cidade de Darfur, mais de um em cada 20 homens adultos havia sido morto em atos de violência.3 Esses dados informaram as organizações humanitárias internacionais e aumentaram a sensibilização para a crise entre as autoridades políticas e o público. 

Superando os desafios da coleta de dados em crises 

Seja em resposta a epidemias, desastres naturais ou conflitos armados, coletar informações confiáveis e interpretáveis em contextos de crise é algo complexo e, muitas vezes, perigoso. Ainda assim, sem dados, não podemos avaliar com precisão as necessidades, melhorar nossas ações ou amenizar o sofrimento das comunidades afetadas. Para superar os desafios logísticos e de segurança, exploramos continuamente métodos alternativos de coleta de dados. Em locais onde a circulação é arriscada demais, mas as redes de comunicação ainda funcionam — como em Porto Príncipe, no Haiti, ou em Gaza, na Palestina —, realizamos pesquisas por telefone. 

Na Mauritânia, utilizamos imagens de satélite para estimar o número e a localização das pessoas deslocadas. No norte da Nigéria, monitoramos as redes sociais em busca de sinais precoces de surtos de doenças. Em aldeias remotas da República Democrática do Congo, trabalhamos com professores para avaliar a cobertura da vacinação infantil. 

Esses esforços não são opcionais — são imprescindíveis. Coletar e analisar dados em situações de crise é indispensável para melhorar a forma como respondemos às crises humanitárias e garantir que as vozes das pessoas afetadas sejam ouvidas. Apesar dos desafios, seguimos comprometidos com esse trabalho, porque uma melhor informação leva a melhores ações e, em última análise, a melhores resultados para os necessitados. 

Compartilhar

Relacionados

Como ajudar