Cobrar taxas de cuidados médicos em países pobres compromete a Saúde

Mit Philips, analista de políticas de saúde de MSF, fala sobre a importância do acesso gratuito a cuidados médicos

Analista de políticas de saúde de Médicos Sem Fronteiras, Mit Philips tem estudado ao longo dos anos os efeitos da cobrança de taxas para se ter acesso a saúde, que os pacientes não têm condições de pagar. Ela explica por que há a necessidade de tornar o atendimento médico gratuito para as populações pobres.

Por que MSF não aprova a cobrança de taxas para se ter acesso à saúde em países pobres?
Mit Philips – Há muito efeitos adversos quando se cobram taxas para ter acesso à saúde em países pobres. Temos observado em nossos projetos e em nossa pesquisa que uma enorme quantidade de pessoas simplesmente não tem como ir ao médico quando precisam e não frequentam as clínicas. Outros apenas procuram ajuda depois que conseguem juntar o dinheiro necessário, através da venda de gado ou pegando emprestado com familiares, e o atraso em seu tratamento pode levar a sérias complicações. Em geral, se você está pedindo para que as pessoas fiquem ainda mais pobres como condição para ter acesso a tratamento médico, você está contribuindo para uma espiral da pobreza que provavelmente vai afetar suas condições de saúde a longo prazo. Para organizações como a nossa, simplesmente não faz o menor sentido por barreiras entre os pacientes e os cuidados médicos que eles precisam, e as barreiras financeiras são particularmente proibitivas. Felizmente, cada vez mais atores na área de cuidados de saúde reconhecem isso.

Você pode dar exemplos concretos dos efeitos que essas taxas podem ter para os pacientes?
Mit – Posso te dar vários exemplos. Recentemente, havia um menino de 12 anos na Libéria que foi atropelado por um carro e que teve uma fratura complicada, com a exposição do osso de sua perna. Seus pais juntaram todo o dinheiro que podiam para pegar um táxi, mas descobriram, ao chegar ao hospital, que já não tinham mais nada para pagar a taxa de registro compulsório. A situação do menino piorou, ele teve tétano e chegou ao ponto de não conseguir mais comer. Os vizinhos falaram aos pais que o atendimento era gratuito na clínica de MSF. Levamos dois meses inteiros para reparar os danos não apenas do acidente, mas também do atraso no tratamento. Um dos excessos que acho particularmente perturbador é o fato de os pacientes não poderem deixar o hospital se não tiverem pago toda a conta. Nós vimos no Burundi e na República Democrática do Congo como as mulheres, depois de realizar uma cesariana, uma operação cara nesses países, eram mantidas reféns com seus bebês até que parentes e amigos conseguissem juntar dinheiro.

O que acontece se você parar de cobrar os pacientes?
Mit – Vimos em vários projetos que o efeito pode ser grande e imediato. Antes, as pessoas não procuravam as clínicas e de repente começaram a ir em grande número. Todos com graves problemas de saúde. No Mali, por exemplo, nós implementamos o atendimento gratuito em uma área com grande incidência de malária. Quase que instantaneamente o número de pessoas infectadas triplicou. Isso nos fez especular quantas pessoas, crianças principalmente, não haviam sido diagnosticadas com a doença e ficaram sem tratamento, quantas morreram desnecessariamente em suas casas. Simplesmente porque eles não tinham dinheiro o suficiente para ir às clínicas e não tinham como consegui-lo. Se um de seus filhos tem febre e precisa de atendimento médico, mas todos precisam de comida, você vai gastar seu dinheiro com o que, se você não pode ter os dois? As escolhas são muito difíceis.

Quais os países devem tornar o acesso àsaúde gratuito?
Mit – Sejamos claros: não existe algo como atendimento de saúde gratuito. Alguém tem que pagar a conta. Mas nos países pobres não deveriam ser os pacientes, uma vez que isso vai contra o que um sistema de saúde tenta alcançar. Quando falamos em não cobrar dos pacientes, estamos falando de dois grupos de países. Há aqueles nos quais o atendimento gratuito já faz parte da política, mas devido à falta de financiamento ou outros meios, as autoridades não têm como implementar isso para a maioria das pessoas. Obviamente, a política que existe apenas no papel não vai salvar uma única vida. Ainda há outros países, principalmente na África Subsaariana, que têm indicadores de saúde muito ruins, incluindo baixa expectativa de vida e altos índices de mortalidade, nos quais a maioria da população é muito pobre. Esses países deveriam começar a implementar o acesso gratuito à saúde em caráter de urgência.

O que os governos deveriam fazer?
Mit – Os governos dos países em questão devem apresentar uma mensagem clara: não podemos cobrar as pessoas pela assistência médica que elas precisam. Ao mesmo tempo, organizações internacionais e governos doadores têm que acordar para a realidade de que as taxas em países pobres excluem um grande número de pessoas do atendimento médico sem solucionar o problema de financiamento do sistema de saúde. Eles precisam urgentemente de aumentar seu apoio técnico e financeiro. Um erro comum tem sido abordar as questões que envolvem o financiamento de atendimento de saúde apenas pela perspectiva macroeconômica. Em MSF, nossa abordagem é estar diariamente entre as pessoas que estão doentes ou machucadas. Nós queremos tratar as pessoas que precisam de atendimento médico e vamos sempre tentar quebrar barreiras que evitem que os pacientes fiquem longe dos serviços de saúde. Da mesma forma, os responsáveis pelas políticas devem entender o que suas decisões podem significar para um menino na Libéria, uma mulher que dá à luz no Burundi e milhões de outras pessoas que precisam de atendimento médico.

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