Chefe de missão na Somália fala sobre desafios humanitários

Em uma conferência realizada em Washington, no dia 17 de janeiro, David Michalski, contou como a organização realiza suas atividades em meio a um conturbado contexto

Senhores e senhoras,

Em nome de Médicos Sem Fronteiras (MSF), por favor aceitem nosso agradecimento por comparecerem a este fórum hoje.

Acabei de voltar da Somália, tendo estado na região de Galgaduud no sábado. Eu estava comandando a volta da nossa equipe internacional para Galgaduud, uma área classificada como nível 5, ou fora dos limites no jargão de segurança da ONU, por anos. Nós deixamos o local no dia 23 de dezembro, um dia antes de grandes confrontos estourarem na Somália.

Durante a ausência da equipe internacional, nossa equipe nacional continuou a trabalhar, realizando cerca de 60 operações em pacientes feridos pela guerra. No dia 10 de janeiro, uma equipe internacional voltou para ajudar a administrar o hospital e as clínicas em áreas mais afastadas.

É nesse momento que você deve esperar algum relato sobre como as coisas estão piorando a cada minuto e que uma emergência está se formando diante de nosso olhos. As coisas estão ficando melhor ou pior? É difícil dizer. O que é triste admitir é que eu poderia chegar aqui desalentado como há cinco anos atrás ou há dez anos e dar a vocês o mesmo tipo de informação sobre a situação humanitária. É um terrível desastre que ocorre há anos e é indiferente ao mundo. Essa indiferença que literalmente matou vários somalis.

Enquanto notícias de enchentes e secas ganharam as manchetes do ano passado, e as histórias sobre a intervenção etíope e sobre a febre do Vale Rift dominaram a cobertura de imprensa no mês passado, a situação da população nos últimos 16 anos tem sido desastrosa.

As notícias raramente mostram a dura realidade de que as enchentes, guerras e secas apenas agravam o sofrimento de uma população em que uma em cada quatro pessoas morre antes de completar cinco anos. A desnutrição é crônica e em vários locais superior ao nível que clássica a necessidade de uma intervenção de emergência em outros países. A infecção por tuberculose está desenfreada. Doenças raras, mas fatais, como calazar são endêmicas em algumas áreas.

Muitas crianças morrem devido a doenças facilmente curáveis hoje em dia, incluindo a malária e infecções respiratórias. Uma grande maioria dos somalis não têm acesso a tratamentos de saúde.

Claro que minha descrição das condições humanitárias se atém apenas ao campo médico. No entanto, as condições de educação, água e saneamento e em outros ramos são igualmente precárias.

Enquanto a indiferença e a negligência marcaram os anos passados, atualmente há uma significante atenção com relação à Somália devido aos recentes desdobramentos políticos e militares no país. No front humanitário, após a queda das Cortes Islâmicas, o governo dos Estados Unidos, a União Européia e a ONU anunciaram o aumento na assistência, citando a necessidade de melhorar as condições de vida para os somalis e fortalecer o Governo Federal de Transição (TGF, na sigla em inglês).

É corrente a idéia de que é praticamente impossível trabalhar na Somália e que os estrangeiros arriscam suas vidas a cada esquina. É verdade que há aspectos distintos sobre administrar programas humanitários na Somália. Uma característica quase única para as operações de MSF é que a proteção armada é necessária porque somos particularmente vulneráveis por ser estrangeiros, devido aos nossos recursos e falta de lugar no sistema de clãs que continua a ditar a ordem social e política na Somália.

Mas é possível oferecer assistência – MSF trabalha no sul e no centro da Somália há mais de 17 anos. Hoje, temos 40 equipes internacionais e mais de 700 trabalhadores nacionais trabalhando em 12 locais no sul e centro do país. Cada área é única na formação do clã, as pessoas em comando, os acordos de segurança necessários e, em alguns casos, a prevalência de doenças. Todas essas locações compartilham grandes necessidades e a economia de guerra que não permitiu a existência de uma estrutura de governo para oferecer serviços sociais por mais de uma geração.

Em 2006, nós realizamos mais de 300 mil consultas sem internação e 10 mil pacientes foram internados em nossos hospitais. Em geral, a qualidade do trabalho é medida pelo alto índice de curas, baixo índice de falhas e de mortes. Infelizmente, não temos programas nos principais centros urbanos, como Mogadíscio e Kismayo.

Isso não significa que nossos projetos são pequenos. Na pequena cidade de Huddur (com população de aproximadamente 20 mil pessoas), nós temos o maior departamento de internação no sul da Somália, como 250 leitos ocupados quase todas as noites. Muitos pacientes percorrem longas distâncias, alguns viajam milhares de quilômetros para receber assistência.

Então, você deve se perguntar como conseguimos manter o trabalho em um contexto tão difícil? Alguns princípios operacionais nos ajudam.

Primeiramente, MSF é uma das poucas ONGs que continuou atuando na Somália com equipes internacionais em terra. Nós acreditamos que essa presença contínua internacional permite um maior entendimento da situação de segurança local, mais qualidade dos serviços médicos oferecidos e solidariedade para com a população em estado agudo de necessidade.

Em segundo lugar, nós trabalhamos para garantir nossa independência de todos os atores políticos e militares, tanto locais quanto internacionais. Nossa independência vem de um grande número de fontes. Por exemplo, logisticamente, nós alugamos nossos aviões e não voamos com o serviço aéreo da ONU ou da Organização Humanitária da Comunidade Européia (Echo, na sigla em inglês). A segurança está atrelada à disponibilidade de transporte aéreo quando precisamos deixar algum lugar rapidamente.

A independência logística leva à independência operacional porque isso significa que não somos forçados a seguir as interpretações de segurança da ONU ou da Echo. Isso tem uma grande ramificação na nossa habilidade de manter os projetos humanitários no terreno. Nos últimos dois anos em Huddur, nós estivemos fora por aproximadamente sete semanas no total. Se fôssemos contar com os vôos da ONU e suas interpretações de seguranças, as operações em Huddur teriam sido suspensas por mais de 16 meses? Por isso, a percepção da população é que MSF só vai sair quando houver uma ameaça à segurança. Claro que a população também leva em conta porque os outros escolheram suspender operações.

Terceiro, nós optamos por fornecer serviços de qualidade. Em nossos projetos, pacientes vêm de locais cada vez mais distantes, e a disponibilidade de assistência médica decente está dando a MSF a reputação de ser uma organização que leva seu trabalho a sério – um dos melhores bens que podemos ter para garantir nossa segurança.

Quarto, é crucial entrar em contato com todos os atores políticos e militares relevantes. Na Somália, poucos estão no comando, sem questionamento sobre sua trajetória ou passado. Ainda assim, os atores humanitários precisam entrar em acordo com os líderes na área para poder oferecer ajuda à população. Quando fizemos uma avaliação e abrimos um projeto em 2005 e início de 2006, foi em uma das poucas áreas controladas pelas Cortes Islâmicas (antes da batalha em Mogadíscio e sua expansão subseqüente).

Durante o período em que trabalhamos com as Cortes, recebemos apoio para administrar nossas ações médicas de maneira independente. Agora que as Cortes Islâmicas não estão mais ativas na região, estamos fazendo contato com as novas autoridades. Se os senhores da guerra, antigos líderes tradicionais ou as Cortes Islâmicas podem nos garantir apoio e segurança para desenvolvermos de maneira independente nossas atividades humanitárias, muitas, mas muitas áreas da Somália se abrem para nosso trabalho.

Agora que descrevi algumas das realidades operacionais do trabalho na Somália, gostaria de abordar algumas preocupações com relação à situação atual.

As lições que aprendi nos últimos 17 anos de operações de MSF na Somália foram as custas de muito trabalho. Os avanços que alcançamos ainda são frágeis.

Atualmente, parece haver um maior interesse com relação à situação humanitária na Somália e os somalis claramente precisam de um aumento de assistência humanitária. No entanto, todos os atores devem garantir que os princípios de ajuda humanitária não sejam deixados no escritório em Nairóbi, em uma conferência em Washington, mas trazidos até seus recipientes no terreno. Devido às dificuldades de oferecer ajuda humanitária na Somália, a falha em fazê-lo pode ter conseqüências desastrosas.

O ceticismo com relação às motivações dos atores humanitários na Somália é alto. Com uma grande comunidade diáspora e ótimos meios de comunicação, os somalis estão bastante cientes do aparente paradoxo entre a grande infra-estrutura e coordenação de ajuda para a Somália presente em Nairóbi e a quantidade de ajuda que atualmente é oferecida aos recipientes no país. Uma repentina enxurrada de ajuda pode também aumentar a desconfiança já existente e conseqüentemente diminuir a habilidade dos atores como MSF em operar de maneira independente e imparcial.

O quanto for possível, MSF vai continuar a trabalhar no terreno na Somália porque as necessidades são enormes e nós mostramos que, com adaptação e independência, os resultados podem ser substanciais em um ambiente difícil para o trabalho humanitário. Nos últimos dois anos, a equipe de MSF representou mais de 60%, e muitas vezes inteiramente, da presença internacional de profissionais de ajuda humanitária no sul e centro da Somália.

Isso não é motivo de orgulho para MSF: nós devemos e vamos tentar expandir as nossas operações. Nós esperamos que o resto da comunidade humanitária internacional tenha planos similares.

O que a Somália necessita agora é uma vontade transparente de ajudar a população que enfrenta uma crise de 16 anos, exacerbada pelos episódios recorrentes de vulnerabilidade aguda. Os somalis precisam ver um compromisso renovado para deixar várias agendas para trás, para chegar ao terreno e garantir que a ajuda humanitária seja oferecida.

David Michalski falou durante a conferência "Garantindo o Futuro da Somália: Opções para Diplomacia, Assistência e Engajamento de Segurança", realizada pelo Centro para Estudos Internacionais Estratégicos dos EUA, pelo Conselho de Relações Internacionais e o Centro Woodrow Wilson Center em Washington, DC.

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