Cata-Tralha: operação traz graves prejuízos à saúde pública além de agravar fosso social

Coordenador de Saúde de MSF no Brasil, Mauro Nunes, faz críticas à operação cata-tralha que recolhe pertences da população em situação de rua do Rio de Janeiro e alerta para os problemas de saúde pública que tal iniciativa pode gerar.

Por Mauro Nunes
Coordenador de Saúde de MSF no Brasil

21/07/2004 – Uma vez mais, a indignação toma conta de mim. Não posso me calar diante da flagrante violação dos direitos mais fundamentais do ser humano a qual vem sendo vítima a população em situação de rua da cidade do Rio de Janeiro. Esta violação tem nome e chama-se “Operação Cata-Tralha”.

O pior de tudo é saber que esta ação cruel é continuamente perpetrada pelo próprio poder público, mais precisamente a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

Mas o que vem a ser isso?

“Operação Cata-Tralha” é o nome como ficou conhecida a operação que recolhe todos os pertences dos moradores de rua de forma arbitrária e violenta, e joga tudo nos caminhões de lixo, isto mesmo, nos caminhões da Comlurb, sem dar nenhuma solução ou alternativa à problemática da vida nas ruas.

Tratam os parcos pertences arduamente amealhados pela população de rua como lixo, “tralha”. Cabe ressaltar que como “tralha”, são considerados os cobertores e roupas comprados ou doados, documentos expedidos pelo próprio poder público com dinheiro do contribuinte, e, mais grave ainda, exames e medicamentos conseguidos com tanta dificuldade através do SUS e uma vez mais às custas dos contribuintes.

Sem mencionarmos a questão da violência institucional e agressão aos direitos humanos e constitucionais destas pessoas, do ponto de vista médico e de saúde pública, esta prática é um completo desastre.

No trabalho cotidiano dos últimos 3 anos de assistência médica e psicossocial direta à população em situação de rua através do Projeto Meio-Fio, Médicos Sem Fronteiras coletou dados epidemiológicos desta população, pelo preenchimento de prontuários de atendimento. A análise destes prontuários revelou que a realidade epidemiológica destas pessoas também é triste. O segmento por nós atendido apresentou uma prevalência de HIV/AIDS 10 vezes mais elevada que na população brasileira em geral. O mesmo se passando em relação à tuberculose, doença que tradicionalmente já atinge gravemente a população geral do Rio de Janeiro e em sendo população de rua, mais ainda.

Com toda a dificuldade que se pode imaginar, atendemos, sensibilizamos sobre a importância do tratamento destas enfermidades e encaminhamos às unidades públicas de saúde. Estas unidades dispensam seus já limitados recursos, exames e medicamentos no atendimento a estas pessoas. Aí, vêm os representantes da própria
administração pública e confiscam estes medicamentos e exames para atirá-los ao lixo sem dó nem piedade.

É preciso que se saiba que muito além da agressão à saúde individual destas pessoas, esta prática causa seríssimos e talvez irreparáveis, danos à saúde pública. Quando o tratamento à base de antibióticos contra a tuberculose é interrompido abruptamente cria-se resistência do agente causal da tuberculose aos medicamentos. O fenômeno da tuberculose multi-resistente, ou seja, a que não cede mais a nenhum tratamento conhecido, é mais e mais comum nos dias atuais e a Prefeitura do Rio de Janeiro, através de suas “Operações Cata-Tralhas” vem colaborando continuamente para isso.

O mesmo princípio de criação de resistência medicamentosa se aplica também aos medicamentos anti-retrovirais usados no tratamento do HIV/AIDS, que também vêm sendo confiscados e jogados no lixo por esta mesma Prefeitura, fazendo um “desserviço” à saúde pública nacional e mundial.

Médicos Sem Fronteiras reconhece que o problema da população de rua é complexo e, aqui, não se posiciona contra a organização urbana de uma forma simplista e inconseqüente. Entretanto, repudiamos veementemente esta ação indigna que não resolve ou acrescenta nada de positivo à questão e ainda gera graves prejuízos à saúde pública, além de agravar ainda mais o fosso social entre as classes.

O descaso é tanto que, apesar de tentarmos contato com o Poder Público através de cartas, denúncias e solicitações de audiências endereçadas ao Governo do Estado, Prefeitura Municipal, Comissões de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, Câmara Municipal e Câmara Federal, até a presente data, não conseguimos as audiências solicitadas e providências não foram tomadas, fazendo com que esta operação aviltante da dignidade destas(es) cidadãs(aos) brasileiras(os) siga incólume deixando seu rastro de devastação física, psicológica e social.

Exigimos que se dê tratamento digno e humano às pessoas em situação de rua para que vivam em paz e tenham finalmente direito à vida e à saúde.

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