“A cada dia que passa, vemos que as pessoas são mais afetadas pela incerteza”

Os sobreviventes a bordo do Ocean Viking relatam histórias de violência em suas jornadas

"A cada dia que passa, vemos que as pessoas são mais afetadas pela incerteza"

A equipe médica de MSF – composta por uma coodenadora da equipe médica, um médico, uma enfermeira e uma obstetriz – está cuidando das 104 pessoas resgatadas a bordo do Ocean Viking. Até o momento, eles fizeram 60 consultas na clínica a bordo, além de cerca de 100 consultas no convés. Muitos pacientes sofrem de enjoo, infecções do trato respiratório e infecções de pele devido a más condições de higiene na Líbia. Até agora, todos os pacientes da clínica relataram histórias de violência em seus países de origem ou a caminho da Líbia. Vários ainda têm cicatrizes visíveis em seus corpos. Com uma espera prolongada no mar, a equipe médica teme que a contínua incerteza e as condições marítimas possam afetar ainda mais sua saúde. Stefanie, coordenadora da equipe médica a bordo, faz uma atualização.

“Como o clima piorou nesta semana e o navio está exposto a ondas altas, ventos fortes e temperaturas mais frias, as pessoas a bordo estão se sentindo mais doentes. Entre as 104 pessoas resgatadas, pelo menos metade sofre de náuseas, dores de cabeça e vômitos, de modo que acham muito difícil comer. Enjoo e incapacidade de comer as tornam muito fracos. As crianças mais novas sentem especialmente os efeitos do enjoo rapidamente, com falta de energia. As mães expressam suas preocupações porque enjoo não é algo que elas tenham experimentado antes. Dizem que se sentem impotentes vendo seus filhos assim e eu sinto que é muito desnecessário expô-las a isso, enquanto aguardamos aqui no mar por um porto seguro.

Além do tratamento médico que oferecemos, incentivamos todos a descansar, deitar, dormir e continuar bebendo e comendo o máximo possível.

A cada dia que passa, vemos que as pessoas são mais afetadas pela incerteza. O bem-estar físico e mental caminham de mãos dadas. Os sintomas relacionados ao frio, como coriza, tosse, dor de cabeça e no corpo, que muitos adultos e crianças apresentam, são sintomas fisicamente visíveis e são agravados pelas condições climáticas desafiadoras. Mas, junto com isso, vemos as pessoas com menos fome, mais facilmente agitadas e menos pacientes devido à falta de controle que têm sobre sua situação, sem saber o que acontecerá e quando.

Um jovem, ainda adolescente, veio a mim certa noite pedindo remédios para dormir. Ele disse que já não conseguia dormir por alguns dias porque os pensamentos o estavam vencendo quando ele se deitava. Ele começou a pensar no que tinha visto e vivido nos últimos meses e explicou que tem medo do que vai acontecer com ele.

Tentamos passar um tempo com todos a bordo, conversar e simplesmente mantê-los informados sobre a situação. Depois de tudo o que eles passaram, é muito preocupante para nós, médicos, sentar-nos e vê-los sofrer mais desnecessariamente. 

Todos os pacientes que vimos na clínica até agora têm sua própria história sobre a violência que sofreram em seus países de origem, ao longo de sua jornada pelo deserto ou na Líbia. Vimos ferimentos, que eles relatam terem sido provocados por água quente ou plástico derretido derramados em seus braços, cortes de faca nas costas e nas pernas e traumas contundentes de objetos diferentes. Um homem nos mostrou um ferimento nos lábios que, segundo ele, é fruto de uma agressão que sofreu no rosto. As pessoas nos dizem que isso tudo aconteceu para extrair dinheiro de suas famílias enquanto elas eram mantidas em cativeiro na Líbia.

Existem várias meninas e mulheres – e também homens – que se apresentaram e nos contaram suas histórias de violência sexual. Além de oferecer assistência médica e primeiros socorros psicológicos, também nos sentamos com eles e tentamos mostrar nosso respeito por terem força para avançar, pois em muitos casos de violência sexual, os sobreviventes não conseguem relatar.

Durante essas consultas, as mulheres falaram sobre como fugiram de seus países de origem por causa de casamento forçado, mutilação genital feminina ou violência sexual. É muito perturbador ouvir que algumas até tomaram contraceptivos antes de sua jornada porque sabiam o risco de estupro.  As cicatrizes invisíveis desses incidentes traumatizantes geralmente precisam de muito tempo para cicatrizar.

Para muitos deles, é a primeira vez em muito tempo que alguém os escuta e reconhece tudo pelo que passaram.  Por isso, nosso primeiro princípio quando estamos na clínica é certificar que os olhamos nos olhos, perguntar o nome deles e apenas reservar um tempo para ouvi-los.”

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