Busca e salvamento no Mediterrâneo: “Um naufrágio é algo que cria laços por toda vida”

Psicólogo de MSF relata sofrimento de sobreviventes que estão em Lampedusa, na Itália

Busca e salvamento no Mediterrâneo: “Um naufrágio é algo que cria laços por toda vida”

Treze sobreviventes do naufrágio de 7 de outubro na ilha italiana de Lampedusa recebem apoio psicológico de uma equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF). Quando o barco virou, 50 pessoas estavam a bordo, mas apenas 22 sobreviveram. Uma semana depois, a embarcação foi encontrada pela Guarda Costeira italiana, que atualmente está recuperando 12 corpos remanescentes do navio.

Desde 19 de outubro, a equipe de MSF – composta por um psicólogo e um profissional de mediação cultural – presta apoio a seis mulheres da Costa do Marfim e sete homens da Tunísia em sessões de grupo. A equipe também estava presente quando os sobreviventes identificaram os corpos de familiares e amigos. O psicólogo de MSF Dario Terenzi relembra os últimos cinco dias.

“Quando os sobreviventes tiveram que identificar os corpos, foram três horas de dor e angústia de partir o coração. Todos estavam tensos e alguns tremiam de medo ao pensar em ver os corpos de seus companheiros de viagem. 

Eu pude sentir a tensão deles nos minutos antes de verem as fotos do que restava de seus entes queridos. Os corpos foram castigados pelo mar. Uma jovem perguntou por que alguns ficaram brancos. A água do mar os havia corroído e mudado a cor da pele. O mar distorceu suas feições, muitas vezes tornando seus rostos irreconhecíveis. Alguns só podiam ser identificados por uma peça de roupa.

Uma jovem da Costa do Marfim reconheceu seu parceiro apenas pela camiseta que vestia no dia em que estava perdido no mar. Apesar do medo, ela queria vê-lo pela última vez. Imediatamente depois, ela desabou, desaparecendo em um longo grito de dor e desespero. Fornecemos toda a assistência possível e, em seguida, a acompanhamos até seu quarto, onde, lentamente, com a ajuda de seus companheiros de viagem, ela se recuperou.

Todos os nossos pacientes estão muito mais calmos do que antes. Quando os encontramos no primeiro dia, seus olhos estavam fixos, seus corpos estavam rígidos e alguns nem podiam falar. Muitos ainda estão tendo pesadelos, enfrentando problemas para dormir ou têm medo de ficar sozinhos. Alguns não dormem há dias, perdem o apetite e dizem que se sentem sobrecarregados por imagens e pensamentos intrusivos, ao revisitar e reviver constantemente o naufrágio. Muitos estão se perguntando por que eles ainda estão vivos, por que eles foram os únicos que conseguiram.

Ao oferecer apoio psicológico, damos as boas-vindas e aceitamos esses sentimentos. Nós permitimos que eles os compartilhem e, de alguma forma, tentamos torná-los mais toleráveis e compreensíveis para suas mentes e seus corações. Levará muito tempo e esforço até que suas lembranças comecem a desaparecer e sua ansiedade se dissipe.

Os sobreviventes do naufrágio precisam partir de Lampedusa. Eles nos disseram claramente que não querem mais ficar aqui. Eles se sentem sobrecarregados com a tragédia e se perguntam por que estão sendo mantidos aqui – aqui onde seus entes queridos morreram.

MSF pediu às autoridades que não separem os dois grupos de sobreviventes – as seis mulheres marfinenses e os sete homens tunisinos – e os transfiram para o mesmo centro de acolhimento. Permitir que eles fiquem juntos é uma medida de proteção pequena, mas muito útil. Vimos no passado que isso pode ajudar significativamente os sobreviventes de naufrágios. Um naufrágio é algo que te une por toda a vida. As autoridades aceitaram nosso pedido. 

Estamos felizes por ter trazido algum alívio a esses sobreviventes, mas permanece uma profunda amargura. Toda vez que voltamos para casa, é na esperança de que não tenhamos que entrar em ação assim novamente. Mas essas esperanças são em vão, porque as pessoas continuam a morrer no mar. Isso é inaceitável”.

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