Ataque a hospital de MSF em Kunduz completa 10 anos

Em 3 de outubro de 2015, 42 pessoas foram mortas por bombardeios dos EUA no Centro de Trauma de Kunduz, no Afeganistão

Centro de Trauma de MSF em Kunduz após o ataque aéreo dos EUA em 3 de outubro de 2015, que matou 42 pessoas. Afeganistão, 2015. © Andrew Quilty Iron roofing and rubble litter a corridor in the MSF Kunduz Trauma Centre as the facility lies destroyed following the 03 October aerial attack which killed 22 staff and patients in northern Afghanistan. The bomb blasts were so strong that the corrugated iron roof caved in here in the blood laboratory corridor, and elsewhere in the hospital building.

Há 10 anos, na noite de 3 de outubro de 2015, o Centro de Trauma de Kunduz, administrado por Médicos Sem Fronteiras (MSF), no Afeganistão, foi alvo de intensos ataques aéreos dos Estados Unidos. O prédio principal — que abrigava a unidade de terapia intensiva, salas de emergência, laboratório, equipamentos de raio-X, departamentos de atendimento ambulatorial e saúde mental e ala de fisioterapia — foi atingido repetidamente e com precisão por mais de uma hora.

 

O bombardeio matou 42 pessoas, incluindo 24 pacientes, 14 profissionais de MSF e quatro acompanhantes. Pacientes foram queimados em seus leitos. Pessoas foram decapitadas ou perderam seus membros. Outras foram baleadas enquanto tentavam escapar do prédio em chamas. Este continua sendo o ataque mais letal já perpetrado contra uma instalação de MSF.

 

“Tudo estava queimado”, descreve Sayed Hamed Hashemy, que trabalhava como cirurgião em uma das salas de cirurgia na noite do ataque. Ele visitou o hospital duas semanas após o bombardeio. “A sala de cirurgia onde eu trabalhava tinha buracos no teto e nas paredes. Os cilindros de oxigênio e a mesa de operação estavam em pedaços.”

 

O tempo parou: foi possível sentir o momento em que todos interromperam seu trabalho.”

Sayed Hamed Hashemy, cirurgião presente na noite do ataque

 

Na parede, a tinta virou bolhas e descascou por causa do calor das chamas. Pedaços de metal grotescamente distorcidos se misturavam aos escombros no chão. Em alguns pontos, o telhado se abriu e deixou o local exposto a céu aberto. As atividades médicas de MSF no nordeste do Afeganistão foram interrompidas.

 

Um hospital na linha de frente do conflito

 

O projeto de MSF em Kunduz teve início em agosto de 2011, com um hospital de 55 leitos. No local, eram oferecidos atendimento cirúrgico de urgência e tratamento para pessoas com lesões causadas pelo conflito em curso, como ferimentos por explosões de bombas, estilhaços e a bala.

 

Antes da inauguração da unidade, as pessoas da região que sofriam ferimentos graves eram obrigadas a fazer longas e perigosas viagens até Cabul, capital do Afeganistão, ou ao Paquistão, país vizinho. A outra opção era procurar clínicas privadas com altos custos.

 

Depois de entrar em funcionamento, o local foi expandido rapidamente para 70 leitos e, em 2015, já possuía 92. O hospital de Kunduz era o único centro especializado em traumatologia no norte do Afeganistão.

 

Em setembro de 2015, os combates em Kunduz se intensificaram. As forças do grupo Talibã entraram e tomaram o controle da cidade, mas perderam algumas semanas depois.

 

O hospital estava na linha de frente e recebeu muitas pessoas feridas. Aumentamos o número de leitos para 110 e, depois, para 150. No final do mês, havia tantos pacientes que eles estavam sendo tratados em escritórios e salas de exame, sendo estabilizados em colchões no chão. Durante todo esse tempo, o Centro de Trauma permaneceu aberto, mesmo com a mudança do controle da cidade.

 

“Tínhamos um enorme orgulho em tratar todos”, afirma Esmatullah Esmat, que sobreviveu ao ataque e hoje trabalha como consultor médico adjunto do Centro de Trauma de Kunduz.

 

Após o ataque, com o hospital praticamente destruído e fora de operação, o acesso ao atendimento médico de emergência foi significativamente reduzido para milhares de pessoas, justamente quando elas mais precisavam.

Sala de espera do Centro de Trauma de Kunduz de MSF, após ataque aéreo dos EUA em 3 de outubro de 2015, que matou 42 pessoas. Afeganistão. © Andrew Quilty

Levou mais de um ano para que MSF voltasse a fornecer assistência médica na cidade de Kunduz e ainda mais tempo para a retomada do atendimento de trauma. Nesse intervalo, a equipe do hospital regional de Kunduz trabalhou arduamente para tentar preencher o vazio deixado.

 

MSF continuou a apoiar o Posto Avançado Distrital (DAP) em Chahardara (outro distrito de Kunduz), que estava em território controlado pela oposição. Enfermeiros forneciam cuidado imediato a pessoas feridas, mas o encaminhamento para o Centro de Trauma de Kunduz não era mais possível. Apenas o atendimento básico estava disponível, e um hospital essencial havia sido perdido.

 

O que aconteceu depois?

 

Como organização, MSF precisava entender o que havia acontecido e lidar com a perda de pacientes, amigos e colegas. O ataque ocorreu apesar de termos compartilhado as coordenadas do hospital com o Departamento de Defesa dos EUA, o Ministério do Interior e da Defesa do Afeganistão e o Exército dos EUA em Cabul.

 

Após o bombardeio, apesar das discussões com as autoridades americanas e afegãs em todos os níveis, MSF não se convenceu com a possibilidade de uma investigação independente e imparcial ser realizada pelas partes envolvidas.

 

Diante disso, solicitamos que a Comissão Internacional de Investigação Humanitária realizasse uma apuração independente. No entanto, sem o acordo dos governos dos EUA e do Afeganistão, ela não pôde prosseguir. Em novembro de 2015, divulgamos nossa própria análise interna.

 

Em janeiro de 2017, MSF decidiu seguir em frente com a construção de um hospital de trauma em um local diferente na cidade e, assim que o terreno foi obtido e teve as minas terrestres removidas, a construção começou, no final de 2018.

 

Paralelamente, em julho do mesmo ano, abrimos uma pequena clínica ambulatorial em Kunduz para atender pessoas com lesões leves, mas infelizmente o local fechou em abril de 2020 durante a pandemia da COVID-19 e não reabriu mais.

 

Quando os conflitos se intensificaram em Kunduz em 2021, as equipes de MSF, ainda aguardando a conclusão da construção das novas instalações, montaram uma unidade temporária de trauma com 25 leitos em nosso escritório, para tratar os feridos de guerra.

 

Finalmente, em 16 de agosto de 2021, MSF transferiu todos os pacientes da unidade de trauma improvisada para o novo Centro de Trauma de Kunduz.

Faizullah, motorista na província de Takhar, ficou gravemente ferido após um acidente rodoviário. Sem condições de pagar pelo tratamento em sua região, ele veio ao Centro de Trauma de MSF em Kunduz para receber tratamento gratuito, que inclui acompanhamento médico e sessões de fisioterapia. Afeganistão, 2025. ©Alexandre Marcou/MSF

Com o fim dos conflitos na cidade, os tipos de cuidados que os pacientes precisavam começaram a mudar. Em vez de ferimentos a bala e por explosões de bombas, a equipe passou a atender acidentes de trânsito, pois as pessoas se sentiam mais seguras para se locomover.

 

Essas mudanças continuaram. Em 2023, foi iniciado um projeto voltado para a resistência antimicrobiana e, em 2025, foram introduzidas atividades de tratamento de queimaduras.

 

Centro de Trauma de Kunduz hoje

 

O novo Centro de Trauma de Kunduz existe hoje em um país que não está mais em guerra, mas que enfrenta outros inúmeros desafios.

 

O local possui uma sala de emergência, uma unidade de terapia intensiva, departamentos de internação e ambulatório, salas de cirurgia e espaço para fisioterapia.

 

Com 79 leitos, a unidade oferece atendimento integral a pacientes com lesões traumáticas causadas por quedas, acidentes de trânsito, munições não detonadas e outras muitas questões.

Murad Ali, da província de Takhar, foi atropelado por um carro e depois baleado três vezes. Ele foi operado e recebeu um fixador interno para corrigir a estrutura óssea. Centro de Trauma de Kunduz de MSF, Afeganistão, 2025. ©Alexandre Marcou/MSF

Entre janeiro e junho de 2025, atendemos 10.253 pacientes no pronto-socorro do centro e realizamos 3.197 intervenções cirúrgicas.

 

“A cidade de Kunduz hoje é diferente da cidade de 2015, assim como a natureza dos ferimentos dos pacientes mudou”, diz Emilie Buyle, coordenadora de projetos de MSF em Kunduz. “Mas uma coisa que nunca mudará é que, como MSF, tratamos todos de acordo com suas necessidades médicas. Não fazemos distinção com base em raça, gênero, etnia, crenças religiosas ou afiliação política do paciente.”

 

Abdul Maqsood, Abdul Salam, Mohibullah, Naseer Ahmad, Mohammad Ehsan Osmani, Lal Mohammad, Najibullah, Shafiqullah, Aminullah Bajawri, Abdul Satar Zaheer, Ziaurahman, Abdul Nasir, Zabiullah e Tahseel. Vocês e todas as outras pessoas mortas naquele dia continuam vivos em nossas memórias.

 

 

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