Após atraso injustificado, 572 sobreviventes desembarcam em segurança em Catânia

Espera agravou condições físicas e psicológicas de muitos sobreviventes resgatados pela equipe de MSF no Mar Mediterrâneo.

Após 10 dias no mar e três dias de espera no porto de Catânia, na Itália, finalmente todos os 572 sobreviventes a bordo do Geo Barents puderam desembarcar em um lugar seguro, no dia 8 de novembro, longe da violência e do sofrimento dos quais fugiram na Líbia.

Inicialmente, as autoridades italianas permitiram apenas o desembarque de 357 pessoas, deixando 215 a bordo como reféns de um debate político e de uma decisão ilegal que as impediu de receber assistência e proteção em terra. Após o desembarque seletivo, o estado psicológico e físico de algumas das pessoas remanescentes se agravou dramaticamente. Um sobrevivente foi evacuado durante a noite entre 6 e 7 de novembro por causa de fortes dores abdominais, outros mostraram sinais de ansiedade e tiveram ataques de pânico.

“O atraso no desembarque realizado pelas autoridades italianas é desumano, inaceitável e ilegal”.
– Juan Matias Gil, coordenador-geral de busca e resgate de MSF.

“O processo de desembarque seletivo com base nas condições médicas dos sobreviventes e o atraso no desembarque realizado pelas autoridades italianas são desumanos, inaceitáveis e ilegais, uma vez que, de acordo com o direito marítimo internacional, os sobreviventes resgatados no mar devem ser desembarcados em local seguro dentro de um prazo razoável”, explica Juan Matias Gil, coordenador-geral de busca e resgate de MSF.

“Os instrumentos e orientações legais relevantes não condicionam o desembarque em local de segurança à existência de condições médicas ou outras razões. Pelo contrário, os Estados costeiros responsáveis devem fazer todos os esforços para minimizar o tempo que os sobreviventes permanecem a bordo do navio de assistência, levando em consideração as circunstâncias particulares de um resgate, como a situação a bordo do navio e as necessidades médicas”, completa Juan Matias Gil.

Foto: Candida Lobes/MSF

“Muitos dos sobreviventes carregavam traumas anteriores, resultado de violência e abuso sofridos na Líbia, em seus países de origem ou ao longo da jornada. A espera prolongada criou um forte sofrimento emocional e psicológico. Episódios de insônia, ansiedade e sofrimento físico e psicológico tornaram-se mais frequentes dia a dia. E, da nossa parte, não tínhamos respostas quando nos perguntaram por que não podíamos desembarcar “, diz Stefanie Hofstetter, líder da equipe médica de MSF no Geo Barents.

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Sobreviventes se lançam ao mar

Youssouf* foi uma das 214 pessoas que tiveram que ficar a bordo por mais tempo. Na tarde de 7 de novembro, juntamente com outros dois sobreviventes, tomou a desesperada decisão de saltar do navio para a água para chegar ao cais do porto. A terceira pessoa eventualmente voltou a bordo, dizendo à equipe de MSF que ele pulou apenas para ajudar os outros dois, pois temia que eles pudessem se afogar. Já Youssouf* e Ahmed* (o outro sobrevivente que saltou do navio) passaram a noite no cais e se recusaram a comer e beber, esperando por uma decisão das autoridades italianas. Após mais de 24 horas no cais, Ahmed apresentou febre alta e sinais de desidratação e foi transportado para a unidade de saúde mais próxima para receber assistência médica das autoridades de saúde italianas.

“Depois de dias e dias naquele barco [Geo Barents], eu estava ficando louco. Tive a sensação de que meu corpo e meus sonhos estavam se separando. Sou grato por toda a assistência que tive a bordo, mas não aguentava mais essa situação”, disse Youssouf ao membro da equipe de MSF que o atendeu no cais, em frente ao Geo Barents.

“Eu só quero encontrar um lugar onde minhas filhas possam viver livres do medo e se sentir seguras”.
– Youssouf, migrante da Síria resgatado pela equipe de MSF.

“Deixei o norte da Síria para proporcionar uma vida segura para minha família. Tenho quatro filhas que deixei para trás e espero que possam se juntar a mim na Europa em um lugar seguro em breve. A mais nova tem apenas seis anos de idade. Nos últimos anos, viram bombas caírem em nossa cidade e não podem ir à escola porque é inseguro. Grupos armados estão por toda parte, sequestrando pessoas por resgate. A situação está fora de controle, e todos os dias temo por suas vidas. Eu só quero encontrar um lugar onde elas possam viver livres do medo e se sentir seguras. Esse é o meu sonho, e eu não vou deixar ninguém tirá-lo de mim.

Youssouf foi autorizado a desembarcar na noite de 8 de novembro, junto a outros sobreviventes inicialmente excluídos do desembarque seletivo.

Foto: Candida Lobes/MSF

“Só quero ligar para minha família e dizer que sobrevivi”.
– Akhtar, migrante de Bangladesh resgatado pela equipe de MSF.

Akhtar*, um jovem de 21 anos de Bangladesh, disse à equipe de MSF que ele deixou seu país há quase dois anos. Sua jornada o levou primeiro à Síria, Líbia e, finalmente, ao Mar Mediterrâneo, onde arriscou sua vida em um barco de madeira superlotado.

“Eu não tinha ideia de como essa jornada seria difícil. Fiquei na Líbia por mais de um ano, vivendo em um acampamento com pessoas de vários países. Éramos nove pessoas dormindo em um quarto de 10m² com apenas um banheiro para mais de 200 ou 300 pessoas”, explicou Akhtar.

“A polícia chegou ao acampamento, prendeu muitos de nós e me levou para a prisão. Eles me deram um telefone depois de alguns dias e me disseram para ligar para minha família. Nunca esquecerei minha mãe gritando ao telefone enquanto os guardas ameaçavam cortar minha mão com um facão enquanto filmavam. Minha família acabou enviando o único dinheiro que tinham para me libertar. Nunca me perdoarei por causar toda essa dor à minha mãe. Não tive notícias da minha família desde então. Eles não sabem se eu me afoguei no mar. Só quero ligar para eles e dizer que sobrevivi”, completou Akhtar.

O Geo Barents deixou o porto de Catânia no dia 10 de novembro e se preparará para voltar ao mar para resgatar pessoas em necessidade. Esta tem sido e continuará a ser nossa resposta às políticas imprudentes europeias e nacionais de falta de assistência no mar, condenando as pessoas ao afogamento e recusando o seu desembarque em um local seguro.

“Como organização humanitária, continuaremos as operações de resgate no mar de acordo com o direito marítimo internacional, segundo o qual conduzimos nossas atividades até agora. Um resgate começa com a retirada de pessoas da água e termina quando todos os sobreviventes desembarcam em um lugar seguro”, acrescenta J.M. Matias Gil.

 

MSF realiza atividades de busca e salvamento no Mediterrâneo Central desde 2015 e atuou em oito navios diferentes (sozinha ou em parceria com outras ONGs). Desde o início das operações com o Geo Barents, em maio de 2021, MSF resgatou mais de 5.400 pessoas e recuperou os corpos de 11 que morreram no mar.

*Nome alterado para proteção.

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