Ampliando o tratamento de malária em Pailin

Médicos Sem Fronteiras treinam agentes da comunidade para tratar doentes e assim diminuir mortalidade pela doença nas aldeias do Camboja

Chai levou quatro horas para ir com seu marido doente da sua aldeia até a estrada principal, transportou-o em uma maca por um tortuoso lamaçal. Depois gastou o salário de uma semana inteira, que normalmente seria usado para comprar alimentos, para pagar um táxi para levá-lo até o hospital. Mas quando chegou, exausta e aterrorizada, disseram que seu marido com malária só teria tratamento se ela pagasse primeiro. Com medo, enviou seus filhos de volta à aldeia (o que significa meio dia de viagem) para que tentassem juntar algum dinheiro. Quando voltaram na manhã seguinte, seu pai estava morto.

Chai havia ficado sozinha para criar os três filhos. Uma pequena quantidade de pílulas poderia ter salvo a vida de seu marido. "Muitas pessoas contraem malária", conta Chai. "Eu vi muitas delas morrerem. Somos pobres".

Estamos em Pailin, uma pequena província ao oeste do Camboja, situada na fronteira com a Tailândia. Foi também um dos últimos bastiões do Khmer Vermelho a se render e uma das poucas áreas do Camboja que ainda tem terra não povoada. É essa promessa de terra que levou muitos cambojanos de todo o país – empurrados pela pobreza das minas e pela doença – a buscar um pedaço de terra fértil na floresta. Mas lá também é um campo de cultivo para o mosquito anófeles, portador do Plasmodium falciparum, a cepa mais perigosa da malária. A incidência do vetor junto com a pobreza e o isolamento dessas recém-criadas aldeias expôs as comunidades a um grande risco, com um acesso limitado de tratamento.

“A malária pode ser tratada facilmente, mas falta verbas aos serviços de saúde nas áreas onde a doença prevalece", explica Raden Srihawong, coordenador de terreno de MSF. "As pessoas mais afetadas são muito pobres e não podem pagar nem o transporte, nem o tratamento. Por isso esperam até ser tarde demais ou usam medicamentos ineficazes ou falsos que compram em clínicas privadas. Por esse motivo, essa doença tão fácil de ser tratada é a principal causa de morte nessa província".

Em 2003, MSF, em colaboração com o Centro Nacional de Luta contra Malária do Ministério da Saúde do Camboja, deu início a um projeto em Pailin para estabelecer diagnósticos precoces da malária falciparum e oferecer o tratamento necessário. O objetivo era desenvolver a capacidade permanente de prestar assistência de qualidade em todas as aldeias da província, nas quais a malária é transmitida.

Um estudo de prevalência de MSF revelou que em algumas aldeias, quase um quinto da população estava infectada com malária falciparum. Um dos maiores desafios dessas aldeias é estarem localizadas a mais de cinco quilômetros do centro de saúde mais próximo. Na época de seca, a falta de água é freqüente e a comida pode faltar, mas as estradas ficam em melhor estado. No tempo de chuvas, quando o risco de malária é mais elevado, elas transformam-se em rios de lama.

Um habitante da aldeia resume essa situação desesperadora: "Somos pobres. Há pouco passamos fome. A estrada estava tão ruim que não era possível transportar material médico se não fosse usando uma moto, o que custa muito caro. A primeira vez que contraí malária tiveram de me tirar da aldeia em uma maca devido ao mau estado das estrada. Levamos cerca de quatro horas para chegar até a estada principal. Quando cheguei ao hospital, tive que pagar quase todo o salário de uma semana inteira. A maioria das pessoas aqui ganham menos de US$ 2 por dia".

Para reduzir o número de mortes por malária, MSF começou a oferecer tratamento gratuito no hospital e clínicas de saúde. Mas devido aos problemas enfrentados por muitos habitantes para chegar até os postos de saúde, foi decidido que a única forma de conseguir diminuir a gravidade e a mortalidade da doença era levar o tratamento até as aldeias.

A princípio, MSF usou equipes móveis de luta contra a malária que podiam chegar às aldeias remotas em motocicletas e mudar de itinerário todos os dias. Mas como isso não era o suficiente, o programa adotou um modelo consistente ao implementar os "agentes de malária" das próprias aldeias: integrantes da comunidade sem formação sanitária que recebem treinamento básico sobre o diagnóstico e tratamento da malária. Desta forma, o tratamento foi posto ao alcance de quase todas as aldeias.

“A malária severa pode se desenvolver em três dias, por isso tratá-la imediatamente é vital", explica Bart Janssens, coordenador médico dos programas de MSF no Camboja. "A única forma de fazer com que as pessoas recebessem tratamento a tempo, e assim impedir um alto índice de mortalidade, era por o diagnóstico e o tratamento ao alcance das aldeias. Por isso adotamos um enfoque comunitário. Os promotores da malária foram introduzidos em todas as aldeias com uma alta incidência de malária situadas a mais de cinco quilômetros da unidade de saúde mais próxima. Em apenas seis meses, MSF estabeleceu uma rede de 43 agentes voluntários de malária que cobriam um total de 62 povoados.

MSF recruta os agentes de malária das aldeias com maior participação da comunidade, selecionando-os com base em sua habilidade administrativa e compromisso em melhorar a saúde de sua aldeia. Apesar de não terem experiência sanitária anterior, eles recebem treinamento para saber reconhecer os sintomas da malária, realizar testes diagnósticos rápido e oferecer um tratamento contra as cepas de malária vivax e falciparum. As equipes móveis de malária visitam os promotores nas aldeias duas vezes por semana para assegurar que os procedimentos corretos estão sendo realizados e para reabastecer as clínicas de material médico.

Longuti, de 34 anos, é o chefe da aldeia de Chai, onde vivem mais de mil pessoas. Ele também é um promotor da malária e conta quais são suas responsabilidades. "Cada dia, visito cerca de seis pacientes com febre. Primeiro, tenho que analisar seu estado e registrar sua história clínica.É importante saber há quanto tempo vivem na aldeia e desde quando estão doentes. Se reclamam de febre e calafrios ou sua temperatura supera os 37,5º, submeto-os a uma análise rápida do sangue. Durante vários dias, MSF me ensinou como fazê-lo e agora, quando o faço, sinto-me seguro.

Se o resultado for positivo, significa que a pessoa tem malaria falciparum, que pode ser mortal. Tenho que pensar e logo dar a dose adequada da medicação. Se pesam mais de 45 quilos, dou tratamento com artemisa. A primeira dose deve ser tomada na minha frente, depois eles podem tomar as três doses restantes sozinhas. Estamos usando o medicamento Artekin® sozinho há muito pouco tempo, mas ele funciona bem e não tem efeitos colaterais.

Para garantir que toda essa gente tome a medicação de forma correta, tenho que acompanhar os pacientes. Como chefe da aldeia, é também minha responsabilidade comprovar que os habitantes estão bem. Visito suas casas e também falo com os vizinhos e faço com que ajudem os pacientes a tomar seus remédios corretamente e peço que me avisem se houver problema.

Inicialmente, o projeto se concentrava apenas na forma letal da malária, mas no ano passado MSF começou a formar seus agentes da malária para que também tratem malária vivax porque estava tendo um claro impacto negativo na saúde da comunidade. Este ano um novo medicamento, Artekin®, foi adotado no programa porque tem muito menos efeitos colaterais. Esses avanços indicam que o modelo poderá responder a novos desafios se tiver de mudar de remédios nos futuro.

Para comprovar a evolução, cada ano MSF submete a análises de detecção de malária por um mês inteiro todo homem, mulher e criança de 11 aldeias escolhidas aleatoriamente. Desta forma, a organização constatou que não só menos pessoas morrem de malária, mas também que a cobertura mais ampla proporcionada por esse modelo conseguiu reduzir também a prevalência de malaria falciparum. A explicação teórica para o fenômeno é que, ao introduzir o diagnóstico e tratamentos precoces, os vetores têm uma oportunidade mais reduzida para se alimentar de sangue e têm menos tempo para transmitir a doença de uma pessoa para a outra. Isto diminui a transmissão da doença na aldeia.

Foi durante a realização de um ano de estudos de prevalência que MSF conheceu Chai, doente com febre. Sentada em um canto, como lágrimas correndo por seu rosto, ela fala do destino de seu marido e do medo que sente a cada dia ao pensar que pode perder outra pessoa da família por causa da malária. Seu medo se justifica: ela obteve resposta positiva para o teste de detecção de malaria falciparum.

Na verdade, ao longo de dois anos, tanto Chai quanto seus três filhos contraíram malária em várias ocasiões, mas ninguém morreu. Pouco depois da morte de seu marido, o agente de malária de sua aldeia, Longuti, começou a trabalhar. Desde então, ela e seus filhos sempre que têm febre são diagnosticados e tratados gratuitamente.

"Todos tivemos malária, mas desde que Longuti foi treinado, temos recorrido a ele para receber tratamento quando estamos doentes. Ele nos dá remédios gratuitamente e isso funciona muito bem. Saber que ele está aqui me deixa muito mais segura. No entanto, temo por nossa saúde, mas me sinto feliz por ele estar aqui".

Outras aldeias também estão satisfeitas com os resultados. "Agora que temos os agentes de malária, a vida na aldeia mudou", contou Sopsorat, chefe da aldeia vizinha. "Quando estamos doentes, podemos rapidamente procurar o agente e ganhar de graça a medicação. Desta forma, foram salvas muitas vidas. Quase diariamente há um novo doente, mas até agora tudo corre bem. Se fossem formados cem agentes da malária nas aldeias, eu ficaria muito feliz".

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