Abdul, o barbeiro, e outras histórias do Ocean Viking

A gerente de comunicações Hannah Wallace Bowman está a bordo da embarcação documentando as operações de busca e salvamento

Abdul, o barbeiro, e outras histórias do Ocean Viking

“Quando nos aproximamos dos barcos, tiro fotos deles.

Faz parte do meu trabalho a bordo do Ocean Viking tentar comunicar o que fazemos como um navio de resgate no mar Mediterrâneo Central – e mostrar por que o fazemos.  

Quando chegamos ao local do resgate, capto o que grande parte do mundo provavelmente imagina quando você diz as palavras “crise de refugiados”: um barco superlotado – tipicamente um bote de borracha cinza ou preto ou um barco de madeira – flutuando baixo no meio de um grande mar azul.

Tornou-se uma imagem icônica da migração.”

Pessoas por trás das fotos
“Recentemente, comecei a olhar de novo para as fotos que tiro nos dias seguintes ao resgate.
Percebi que, quando o faço, não vejo mais o barco. Em vez disso, reconheço as pessoas a bordo e suas histórias.”

Mohammed

“Mohammed, de Darfur, se destaca. Embora ele seja um rapaz pequeno, o blazer enorme da escola que esconde seu corpo magro o distingue.

Uma manhã, ele me pediu uma caneta e algo para escrever.

Mais tarde, naquele mesmo dia, ele me devolveu cinco folhas de papel arrancado da parte de trás de um caderno de exercícios, com letras pequenas o suficiente para caber uma vida nas páginas: “HISTÓRIA DO REFUGIADO”, diz o título.

Ele cresceu em um campo e desde então teve de abandonar o local.

Durante as partes mais desafiadoras de sua história, ele usa diagramas, marcadores ou sistemas de numeração para organizar seus pensamentos: 1. Eles estupraram minha irmã. 2. Houve um incêndio e os soldados vieram.

E assim por diante.

Ele estava no centro de detenção de Tajoura, perto de Trípoli, na Líbia, no dia em que foi bombardeado.

Correndo para escapar quando os guardas abriram fogo em meio ao pânico, seus amigos caindo ao seu redor.
Ele me disse que tem medo de fechar os olhos à noite.

Sua cor favorita é verde.”

Abdul

“Não consigo esquecer Abdul, o barbeiro. Ele, como muitas das pessoas que resgatamos, tinha um ofício ou profissão antes de ser retirado das ruas de Trípoli e encarcerado.

Gentil e de fala mansa, ele nada o deixa mais feliz do que cortar cabelos, ele me diz. Quando o entrevistei sobre sua jornada, também tirei um retrato dele.

Virando a tela da minha câmera para mostrar a foto, ele balança a cabeça sem acreditar. Ele está meio rindo, mas seus olhos estão arregalados de consternação.

“Eu não tenho barba assim!” ele exclama.

Ele timidamente passa os dedos pelas maçãs do rosto e pelos pelos do queixo, ainda balançando a cabeça.
Amanhã vou me barbear, ele diz, decidido. Mantido em cativeiro por mais de um ano, fazia tanto tempo que ele não se olhava no espelho que não sabia mais como era.”

Grace
“Clicando para a próxima foto, vejo Grace. Digna e conformada, mesmo depois de dias à deriva no mar.

Eu a reconheço imediatamente, o rosto pálido com o sal incrustado em torno de suas feições. Eu costumava encontrá-la em pé no convés à noite, depois que todo mundo dormia, olhando para as estrelas.

Ela me pediu repetidas vezes para lhe dizer que aquilo estava acontecendo de verdade e que eles estavam a salvo a bordo de um navio de resgate.

Ela até me pediu para belisca-la, para que ela soubesse que não estava sonhando. Eu fiz isso, e nós rimos, mas eu não acho que ela estava convencida.

Grace, seu marido e quatro filhos tentaram fazer a travessia duas vezes antes. Quase perderam a filha, que ficou doente durante o período em que foram aprisionados depois de terem sido interceptados pela Guarda Costeira da Líbia e retornado à força à Líbia.

Esta foi a terceira e última tentativa, ela me disse. Se eles não conseguissem dessa vez, ela esperava que eles morressem tentando. Pelo menos desta forma tudo terminaria, e eles estariam em paz.

Ouvi esse mesmo sentimento ser repetido com uma frequência devastadora.”

Arriscando a vida e os membros

“Quase sem exceção, as pessoas estão cientes dos riscos de atravessar esse traiçoeiro trecho de água em uma embarcação sem condições de enfrentar o mar.

Elas conhecem outros que morreram. Ou já viram pessoas morrerem durante tentativas anteriores. Ou têm amigos ou parentes que simplesmente desapareceram.

A travessia do mar do Mediterrâneo Central é a rota migratória mais mortífera do mundo. Cerca de 692 pessoas morreram na tentativa de chegar à Europa apenas neste ano.

Leva apenas 60 segundos para alguém se afogar. Para uma criança, o tempo é consideravelmente menor.

No entanto, quando pergunto às pessoas por que elas tentam fazer a travessia mesmo sabendo o quanto é perigoso, eles respondem que se estou fazendo essa pergunta, não entendo do que estão fugindo.

Eles preferem morrer do que passar apenas mais um dia na Líbia.”

Protegendo os mais vulneráveis
“Se não fosse por navios como o nosso, não haveria ninguém para salvá-los.

Em uma situação em que a fragilidade da vida é tão brutalmente aparente, parece óbvio que salvar vidas no mar é vital.

No entanto, há pessoas que discordam da prestação de ajuda humanitária para aqueles que fogem da Líbia através da água, tanto assim que eu geralmente aconselho nossa equipe de MSF a bordo a não ler comentários em mídias sociais ou artigos de jornal que mostram nosso trabalho.

De fato, olhando as manchetes, encontrar maneiras de diminuir a diferença entre a percepção do público em relação ao nosso trabalho e o que fazemos de fato pode parecer insuperável.

Mas precisamos encontrar uma maneira de conciliar a discrepância entre a política do medo e as pessoas que tentamos salvar.”

Os refugiados são seres humanos
“A bordo do Ocean Viking, temos o privilégio de ter uma visão em primeira mão da vida daqueles que resgatamos.

Eu gostaria que todos pudessem passar apenas um dia na presença da humanidade que caracteriza nossa missão: conhecer as pessoas que a Europa condenou. Ao seguir nosso trabalho, permita-nos apresentá-lo.

Talvez, desta forma, o barco superlotado não tenha mais de existir.”
 

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