“A compaixão começa com o ato de se recusar a desviar o olhar”

Em Histórias de MSF, Narin Fandoglu, relata o que viu da guerra no Sudão e retratou através de desenhos

Narin Fandoglu, consultora de operações de MSF, compartilha alguns dos desenhos que fez durante seu trabalho no Sudão. ©Narin Fandoglu

As cenas mudam: diferentes idades, gêneros, rostos e histórias. Mas quando olho nos olhos dos jovens, das mulheres e até mesmo dos homens na estrada enquanto se deslocam, você sabe quem vejo refletido nos olhos deles? Vejo a mim mesma. 

Sou Narin Fandoglu — humana antes de me tornar uma profissional humanitária. Minha jornada com Médicos Sem Fronteiras (MSF) começou em 2016. Anos depois, enquanto trabalhava em contextos de migração, de repente me dei conta de que eu também fui uma criança migrante. Essa constatação ficou comigo e acredito que moldou meu caminho com a organização. 

Quase uma década trabalhando com MSF significou muitos projetos e inúmeras histórias. Havia noites em que eu tinha a sensação de que meu coração sangrava com o que eu tinha visto e ouvido; momentos em que o peso de tudo isso me levava a um completo congelamento emocional por não conseguir chorar ou gritar.  

O fardo era pesado. Mas, como preciso cuidar de mim mesma para continuar ajudando a cuidar dos outros, precisava de uma maneira de liberar essas emoções. Então, voltei a um costume da minha infância: desenhar. 

Narin apresenta seu diário de aquarela com os desenhos que fez durante seu trabalho no Sudão. © Fanny Hostettler

Em 2017, comecei a desenhar o que via no meu diário de aquarela. Isso ajudou. Eu chorei até me sentir aliviada e, no dia seguinte, voltei, pronta para apoiar pessoas em situação de extrema necessidade. 

Desenhar se tornou a minha forma de abrandar, de processar as minhas emoções e de continuar. 

 

Nas estradas de Cartum e Darfur 

Visitei o Sudão duas vezes em 2025, uma vez no leste e outra no oeste do país. Foi doloroso ver a nação assim, dividida em dois. 

Em fevereiro, fui ao Chade e depois atravessei a fronteira para Darfur, no Sudão. Passei duas semanas em El Geneina, capital do estado de Darfur Ocidental, e depois uma semana em Fora Baranga, no sul desse estado, onde um projeto de MSF estava começando, voltado principalmente para desnutrição e saúde infantil. Depois, voltei no final de maio, desta vez para Porto Sudão e depois Cartum. 

O acesso em si é um dos maiores desafios no Sudão. Para chegar a Cartum, voamos de Genebra para Nairóbi, no Quênia, depois pegamos um voo para Porto Sudão e, finalmente, viajamos dois dias por estrada. Uma longa viagem só para chegar. E quando cheguei, fiquei muito aliviada ao finalmente ver meus colegas, que estavam esperando para entrar no país havia mais de um mês por causa dos vistos e de outros processos burocráticos. 

Desde que a guerra eclodiu em Cartum, em abril de 2023, eu acompanhava as notícias de perto. Minha função normalmente não é na linha de frente — outros colegas começam o projeto antes de mim — mas o Sudão estava em minha mente desde as manifestações de 2019.  

Eu me sentia conectada, especialmente às mulheres na linha de frente. A coragem delas me inspirava; eu me sentia solidária a elas.

Foi muito emocionante ver o quanto nossos colegas se esforçaram para negociar a entrada e a instalação dos projetos. Hoje, nossas equipes contam com mais de 1.300 profissionais, tanto contratados localmente, quanto equipes internacionais móveis, trabalhando em várias unidades de saúde e apoiando os funcionários do Ministério da Saúde do país. Ver esse nível de desenvolvimento, apesar das dificuldades, foi muito encorajador. 

 

Esboços que ficaram comigo 

Este ano, no Sudão, continuei a fazer desenhos. Mas desta vez, também quis documentar o que estava vendo, o que estava sentindo. 

Muitas vezes, quando volto de países como o Sudão — que vivem uma das emergências mais negligenciadas do mundo — mesmo as pessoas mais próximas a mim associam esses lugares apenas à guerra e ao sofrimento. Elas raramente me perguntam sobre a vida cotidiana lá, algumas evitam completamente o assunto. Através dos meus desenhos, tento compartilhar outra perspectiva. 

Então, esbocei detalhes da rotina, como mercados, cafeterias, estradas, comida. Para mostrar que o Sudão é mais do que conflito. Ao lado da guerra, há resiliência, beleza e vida cotidiana. 

Quando compartilhei um desenho das pirâmides no Sudão, muitas pessoas nem sabiam que elas existiam. Esse esboço gerou conversas sobre história e cultura, não apenas sobre guerra. 

De Darfur, também me lembro de um homem carregando combustível em um carrinho de madeira puxado por um burro cansado. Estava um calor escaldante, o ar estava seco, as pessoas esperavam por horas. Do conforto e conveniência de Genebra, a cidade onde resido, àquela cena de luta — o contraste me deixou inquieta. Isso me fez questionar as injustiças do nosso mundo dividido. 

E na estrada de Porto Sudão a Cartum, me lembro de uma mulher fazendo café. Sua barraca estava montada em frente a uma casa parcialmente destruída, quase no meio do nada. A princípio, ela parecia estar sozinha. Então notei um bebê em uma cama atrás dela e uma criança brincando nas proximidades. Essa mulher trabalhava enquanto cuidava dos filhos. Quando pedi café sem açúcar ou gengibre, ela riu para o nosso motorista e brincou comigo por meu mau gosto. Sua força e tranquilidade personificavam as mulheres sudanesas que eu imaginava. 

 

Mais tarde, eu a desenhei. Não fiz um retrato, era mais uma memória, uma mistura de sua presença e da impressão que ela deixou em mim.

Na aquarela, Narin Fandoglu desenha a mulher que encontrou durante sua passagem pela estrada de Porto Sudão. ©Narin Fandoglu

 

E se eu fosse sudanesa… 

Onde quer que eu vá, pergunto a mim mesma: se eu tivesse nascido aqui, como seria minha vida? Não escolhemos onde nascemos, em que família ou com que passaporte. As escolhas são importantes, sim, mas onde começamos molda muito onde terminamos. 

Muitas vezes me sinto presa entre duas vidas. 

No acampamento, chego de Genebra, com uma vida “muito confortável”, enquanto meus colegas sudaneses vivem em áreas remotas ou mesmo em acampamentos para pessoas refugiadas. Isso me faz pensar: eu deveria estar fazendo mais? Em casa, minha família e meus amigos vivem com a minha ausência três ou quatro meses por ano. Os planos são frágeis. Também sinto a necessidade de explicar o que faço, o que está acontecendo.

Então, quando digo mais uma vez à minha família e aos meus amigos: “Vou para o Sudão”, espero que eles entendam não apenas o quanto a guerra afeta profundamente as pessoas, mas também que ainda há calor humano, humor e vida cotidiana. Através de fotos, posso compartilhar o Sudão de forma mais honesta. 

Estado de Darfur Central, Sudão. ©Juan Carlos Tomasi

Agora quero compartilhar com um público mais amplo — com vocês que estão lendo minhas palavras, porque quero que as pessoas vejam o Sudão, um país que parece esquecido.  

Estamos enfrentando não apenas uma crise humanitária, mas uma crise de compaixão, porque a compaixão começa com o ato de ver, de se recusar a desviar o olhar.

Se as pessoas pudessem dedicar um momento para ler sobre o Sudão, para pensar, para ter empatia, para se imaginar no lugar daqueles que vivem essa guerra, isso, por si só, já seria um ato importante. 

Não podemos parar a guerra com desenhos. Mas podemos testemunhá-la e nos recusar a desviar o olhar dela. 

 

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