Na ONU, MSF alerta que situação de civis na RDC está se agravando

Presidente internacional de MSF afirma que esforços diplomáticos não detêm conflitos que afetam população do leste do país

Leia a seguir o pronunciamento do presidente internacional de Médicos Sem Fronteiras, Javid Abdelmoneim, ao Conselho de Segurança da ONU. Ele falou nesta sexta-feira, 12 de dezembro, sobre a grave situação humanitária no leste da República Democrática do Congo.

 

Senhor Presidente,

Permita-me começar com uma verdade que este Conselho deve reconhecer: apesar da aparência de ter havido um impulso político nos últimos meses e da assinatura de acordos de paz, as equipes de MSF continuam testemunhando níveis impressionantes de violência, deslocamento e privação nas províncias de Kivu do Norte e Kivu do Sul e de Ituri.

Nossos pacientes descrevem fugas de vilarejos bombardeados e brutalidade extrema.

Da perspectiva que MSF tem em hospitais, clínicas e locais de deslocamento, o quadro é inequívoco: essa crise não está diminuindo. Os sistemas de saúde estão entrando em colapso. A violência sexual é generalizada. E o acesso humanitário e o financiamento estão diminuindo à medida em que as necessidades aumentam.

A distância entre a sinalização política e a realidade vivida por milhões está se ampliando.

Na verdade, a tinta usada para escrever o acordo assinado semana passada em Washington mal secou, e o M23 já lançou uma ofensiva ampla contra Uvira, expulsando cerca de 200 mil pessoas de suas casas – 40 mil delas para o Burundi – uma evidência clara de que a promessa de paz está mascarando um cenário de violência persistente e em larga escala.

Está cada vez mais claro que os esforços de paz em curso estão servindo para consolidar os interesses extrativos de atores poderosos, em vez de trazer alívio ao povo da República Democrática do Congo (RDC).

Nada disso é novidade. A violência enfrentada pelas comunidades tem raízes em décadas de predação de recursos e negligência estrutural.

Esta é a tragédia duradoura: geração após geração de congoleses viram suas vidas e dignidade sacrificadas nos altares da política e do lucro.

Até que os civis não sejam mais tratados como descartáveis, nenhum processo político trará alívio real.

 

Senhor Presidente,

Apesar dos compromissos de alto nível assumidos em Washington e Doha, a violência contra civis continua sendo rotina.

Tanto as forças do Estado congolês quanto grupos armados não-estatais – incluindo M23, FDLR, ADF, elementos das FARDC e seus aliados Wazalendo – continuam colocando civis em perigo e obstruindo o acesso à assistência. Todos já foram implicados em graves violações do direito internacional humanitário: assassinatos sumários, violência sexual, saques e bloqueio de assistência humanitária.

O resultado é devastador.

Em Binza, pacientes de MSF descreveram homens abatidos nos campos e mulheres e crianças baleadas às margens do rio, seus corpos deixados à deriva rio abaixo – testemunhos que ecoam relatos mais amplos de massacres no Kivu do Norte. Vários de nossos pacientes disseram que esses ataques foram cometidos por membros do M23.

No Hospital Rutshuru, as admissões por trauma aumentaram 67% em julho. Mais de 80% das vítimas de ferimentos à bala admitidas em instalações apoiadas por MSF em julho e agosto eram civis.

Em Ituri, ao longo deste ano, realizamos mais de 1.500 cirurgias de trauma em um único hospital – a maioria por ferimentos relacionados ao conflito.

As instalações e a equipe médica não são poupadas: ambulâncias foram paradas sob a mira de armas e pessoas armadas invadiram instalações médicas, ameaçando e aterrorizando tanto pacientes quanto funcionários.

Em Masisi, há apenas duas semanas, o Centro de Saúde de Kazinga – claramente marcado com o logotipo de MSF – foi saqueado e destruído por uma milícia Wazalendo.

Três colegas de MSF foram mortos neste ano.

Essas violações explicitam uma profunda falha em proteger civis.

 

Senhor Presidente,

A violência sexual no leste da RDC é uma emergência persistente que tem marcado comunidades há décadas. Hoje, isso continua em uma escala inimaginável.

Somente nos primeiros seis meses deste ano, quase 28 mil sobreviventes de violência sexual buscaram atendimento em instalações apoiadas por MSF no leste da RDC. Isso dá uma média de 155 sobreviventes atendidos todos os dias.

Três em cada quatro ataques foram cometidos por indivíduos armados. Os ataques ocorrem em campos, em estradas, em pontos de coleta de água e dentro de casas.

Muitos sobreviventes só conseguem assistência quando já é tarde demais para obter algum tratamento preventivo. E muitos sequer são atendidos.

Ao mesmo tempo, os suprimentos médicos essenciais estão perigosamente baixos. No Kivu do Norte e do Sul, metade de todas as zonas de saúde não possui a profilaxia pós-exposição, deixando sobreviventes sem os cuidados críticos que poderiam prevenir infecções, evitar gravidez indesejada e reduzir danos a longo prazo.

A escala e a normalização da violência sexual refletem um colapso profundo de mecanismos de proteção comunitária e uma quase total ausência de responsabilização.

Mulheres e meninas nos dizem que a violência sexual não é apenas temida – ela é esperada.

Senhor Presidente,

O sistema de saúde está colapsando sob o peso combinado da violência, da negligência crônica, dos deslocamentos em massa, dos cortes na ajuda e do surgimento de gestões paralelas.

Em muitas áreas, até 85% das instalações enfrentam escassez crítica de medicamentos, quase 40% dos profissionais de saúde deixaram seus postos e mais da metade das unidades que avaliamos foram fechadas ou danificadas.

As consequências são letais.

Em Walikale, as mortes de crianças severamente desnutridas dentro de 24 e 48 horas após a admissão ao hospital aumentaram 89% e 309% em comparação com o ano passado. As famílias chegam tarde demais – atrasadas pela insegurança, custos e pela falta de assistência funcional.

Os serviços de saúde preventiva desmoronaram, e a vacinação é repetidamente interrompida, levando a um aumento nas doenças infecciosas evitáveis. Os casos de cólera já ultrapassam 38 mil, e as mortes mais que dobraram em relação ao ano passado. O sarampo continua se espalhando. Um surto de malária de proporções desconhecidas está se desenrolando, enquanto não há instrumentos de diagnóstico nem tratamentos básicos disponíveis para contê-lo.

Senhor Presidente,

À medida em que as necessidades aumentam, o espaço para fornecer assistência humanitária está diminuindo.

Em todo o leste da RDC, tanto atores estatais quanto não estatais impõem restrições não relacionadas às necessidades da população civil. A assistência que salva vidas é atrasada, desviada ou bloqueada.

O fechamento das pistas de pouso de Goma e Bukavu – e o fracasso do governo de Kinshasa e do M23 em chegar a um acordo para reabri-las – reduziu os pontos de entrada de suprimentos e pessoal para o leste da RDC e retardou o movimento dentro do Kivu do Norte e do Kivu do Sul.

Atualmente, chegar a Walikale pode levar mais de um mês durante a estação chuvosa. As mudanças nas linhas de combate também fazem com que o transporte de suprimentos de Bukavu para Uvira passe a exigir cruzar quatro fronteiras internacionais a um custo quatro vezes maior do que o anterior.

O acesso humanitário não é opcional – é uma obrigação legal. Os aeroportos devem ser reabertos, a passagem segura por rotas-chave deve ser garantida, e os suprimentos médicos e humanitários devem ser transportados sem restrições.

Além do colapso na proteção civil e da erosão do acesso, grandes doadores estão cortando seu apoio e eliminando serviços que salvam vidas diante do aumento visível das necessidades.

Senhor Presidente,

Compromissos assumidos em capitais pouco significam quando não são acompanhados de medidas concretas. Fazemos três pedidos:

Primeiro, a proteção de civis deve ser colocada no centro de todo engajamento político e diplomático.

O progresso não pode ser medido pelo número de acordos assinados, mas sim pelo fato de as pessoas estarem ou não mais seguras em suas casas, nas estradas que percorrem e nos locais onde buscam assistência.

Segundo, o acesso humanitário deve ser mantido – não como um gesto de boa vontade ou uma medida de construção de confiança – mas como uma obrigação moral sustentada pelo direito internacional humanitário.

Terceiro, a resposta humanitária deve ser financiada no nível que essa crise exige. Sem financiamento flexível e ágil, as mortes evitáveis continuarão a se acumular.

Para concluir, senhor Presidente,

De nossa perspectiva – ao lado dos pacientes, não em cima de um palanque – esses debates não carecem de visibilidade. O que falta é que haja consequências.

Este Conselho é regularmente informado sobre a situação na RDC. Os membros conseguem descrever com precisão as violações enfrentadas pelos civis, mesmo enquanto essas violações continuam acontecendo sem qualquer controle.

Para as pessoas que vivem em meio a esse conflito, a questão não é se o Conselho entende sua realidade – mas sim por que esse entendimento raramente se traduz em alguma proteção significativa.

Essa desconexão é condenatória. Esse fracasso é profundo.

Se este Conselho não puder agir quando tantas vidas estão em jogo, então a promessa de proteção civil se torna uma doutrina vazia – recitada aqui, mas ausente onde é mais necessária.

O que hoje é necessário não é nem uma nova retórica nem uma nova arquitetura diplomática. É a vontade de insistir no fato de que os civis não são descartáveis e que seus direitos – à segurança e à dignidade – são inegociáveis. Tanto na RDC quanto em qualquer outro lugar onde civis estejam sob ameaça.

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