Uma estada em Kasese, Uganda, com MSF

Infectologista brasileira descreve os seis meses que passou com a organização em projeto voltado para a oferta de cuidados para HIV e TB

Chegando à capital de Uganda, em meados de agosto de 2015, um dos meus primeiros choques foi o trânsito caótico. Não há lugar seguro para os pedestres caminharem. Atravessar uma rua movimentada é uma tarefa que requer toda atenção, destreza e uma boa dose de coragem. Em um dos meus primeiros dias em Kasese, fui com alguns colegas ao centro da cidade fazer pequenas compras. Era final da tarde, já estava escurecendo, e a falta de iluminação pública me surpreendeu. Era algo que nunca havia pensado sobre. É aquele tipo de coisa que a gente só agradece que tem quando falta. Fazer o caminho de casa na total escuridão ou usando uma lanterninha simples de celular foi a rotina até o final de minha permanência no projeto, em fevereiro deste ano.

Nos primeiros dias no projeto, estranhei muito o calor. Porto Alegre pode ser extremamente quente, mas acho que não ajudou o fato de eu ter saído direto do inverno daqui para a estação seca de lá. Mas, mesmo com o calor, achei fácil dormir com o mosquiteiro, até descobrir que estava fazendo da forma errada… Existe uma técnica para amarrar a tela e evitar que os insetos entrem: você tem que prender o mosquiteiro no colchão. E são essas pequenas coisas que fazem com que a gente aprenda que está em um lugar diferente do qual cresceu, que mesmo o que parece simples pode não ser como a gente imagina.

No Brasil, estava acostumada ao atendimento direto aos pacientes, com menor parte do tempo voltada ao gerenciamento dos programas onde trabalhava. Em Uganda, médico é muito mais raro. Não havia nenhum nos 13 postos de saúde selecionados para o nosso projeto. Nesses locais, a população é assistida por enfermeiros e clínicos que estudaram as condições mais comuns presentes nas comunidades, devendo encaminhar os pacientes mais complicados para os médicos nos hospitais. Então, mais importante do que fazer o papel de apenas um único clínico, muito do trabalho do médico é planejar como será o atendimento aos pacientes, garantindo que quem tem problemas mais graves receba mais atenção; servir de referência para ajudar nos casos mais complicados; e partilhar nosso conhecimento com os profissionais locais. Assim, a ideia é a de que todos enfermeiros e clínicos dessa região tenham a capacidade de fazer atendimentos de boa qualidade, e que esses benefícios durem mesmo quando MSF não estiver mais ali.

Fui uma das primeiras profissionais internacionais a chegar no projeto em Kasese, então tudo estava muito no início. É um programa focado na melhoria do atendimento às pessoas com HIV e tuberculose nas comunidades pesqueiras. Então, fomos começando aos poucos. E, com o tempo, uma das coisas que percebemos é que o atendimento para pacientes com HIV precisava ser melhorado principalmente no que diz respeito ao grande número de pessoas abandonando o tratamento, mas o mais básico estava ali – antirretrovirais fornecidos gratuitamente, a disponibilidade de teste rápido para diagnóstico e a realização de consultas, mesmo que feitas irregularmente e sem a presença dos profissionais mais capacitados para isso. Entretanto, o atendimento para paciente com tuberculose (TB) era praticamente inexistente. Apesar da medicação ser fornecida gratuitamente pelo governo, o estigma em relação à doença era, surpreendentemente, muito maior do que do próprio HIV. Profissionais de saúde têm um grande receio de ter contato com pacientes com TB, e isso impede que o diagnóstico seja feito. Então, a situação estava completamente caótica, pois pessoas com a doença e a capacidade de transmitir certamente estavam frequentando o posto de saúde, mas por medo e falta de conhecimento não eram identificadas para que pudessem ser tratadas.

Lembro-me bem do primeiro diagnóstico de TB feito pela nossa equipe em uma menina de 16 anos. Primeiramente, ela ficou muito assustada, pois acreditava que o diagnóstico da doença era uma sentença de morte. Então, a nossa equipe de conselheiros deu a ela todo o suporte necessário, explicando que ela tinha toda a chance de se curar e que o tratamento era longo, mas simples. E ao longo dos dias, fomos recebendo diversas pessoas interessadas em saber se tinham a doença, outras que haviam abandonado o tratamento e estavam vendo uma nova oportunidade de se curar e outros que já estavam em tratamento, mas nos procuravam para realizar os exames de acompanhamento que não estavam sendo feitos no posto. Um dos maiores desafios foi integrar os profissionais do posto de saúde nesses atendimentos. E uma das maiores preocupações era a falta equipamentos de segurança para que as equipes se protegessem contra a infecção. Então, entre as primeiras medidas de MSF para combater o estigma foi melhorar as condições para que os profissionais de saúde do posto local pudessem realizar seu trabalho sem serem infectados.

Como eram diversos postos de saúde diferentes, cada primeira visita me impactou de uma forma. Tive o fascínio de ver as pequenas comunidades integradas ao ambiente natural, vendo as pessoas lavando roupa ao lado dos hipopótamos, as famílias de javalis no pátio das casas, os pescadores remando em pequenas canoas num lago com crocodilos; mas também teve o choque de ver uma área em que os pescadores, muito mais pobres, eram mantidos segregados da comunidade principal por uma cerca; a maioria dos postos de saúde com grande infestação de morcegos, causando sujeira, um forte cheiro desagradável e um barulho incessante que sempre me dava arrepios. Nunca consegui me acostumar com os morcegos. E era nesse ambiente que as pessoas eram atendidas e onde os profissionais de saúde ficavam o dia inteiro. Me impactou muito também a grande quantidade de crianças e como elas ficavam curiosas com a nossa presença. Então, nessas áreas mais remotas, sempre que a nossa equipe chegava, era uma grande brincadeira para elas.  

Meus colegas de trabalho foram ótimos e um grande apoio nos momentos mais difíceis. Éramos um grupo super diverso, profissionais de todos os continentes e com bagagens culturais completamente diferentes. Então, não só era bom ter diferentes pontos de vista para as questões relacionadas com o trabalho, como também pudemos aproveitar o que cada um trazia de diferente para os momentos de folga. Novas músicas, danças, filmes, comidas. A nossa ceia de Natal foi super especial. É algo simples, mas emociona de qualquer maneira ver todo mundo, mesmo os mais reservados, tentando contribuir de alguma forma: guardando a pequena especialidade do seu país para dividir nesse dia, cozinhando, preparando a decoração. Todo mundo tem saudades da família e dos amigos, mas conseguimos transformar isso numa energia boa.

De volta ao Brasil, ainda reflito sobre minha participação no projeto em Kasese. Sei que o nosso objetivo de diminuir o adoecimento e a morte de pessoas afetadas pelo HIV e pela TB, trazendo o diagnóstico e o tratamento para perto do paciente, mantendo uma boa qualidade de atendimento e contribuindo para uma mudança duradoura, demanda um trabalho de muitos anos. O meu período em Kasese foi apenas o pontapé inicial, mas nesses poucos meses já conseguimos que pacientes que haviam abandonado seus tratamentos retomassem o acompanhamento e pudemos fazer diagnósticos que de outra forma não estariam disponíveis para aquela população. E só isso me garante uma boa dose de otimismo.

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