Sobre ser Muzungo

Jessica Blanco, que atua no projeto contra a malária no Burundi, compartilha sua experiência no terreno e conta como o choque cultural contribuiu para seu olhar ao mundo

Equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) realizaram várias campanhas de prevenção da malária em grande escala no leste do Burundi nos últimos anos, mais recentemente nas colinas de Kinyinya. Seu objetivo: atacar a doença em sua origem, reduzindo o número de mosquitos. A malária é um grande problema de saúde no Burundi. Endêmica e causa de surtos regulares, a doença é o principal motivo de hospitalização e morte em crianças pequenas. Isso vale para todo o continente africano: a cada ano, mais de 90 por cento das 400 mil mortes por malária são registradas na África.

Jessica Blanco chegou no Burundi no início de junho de 2021 para atuar no administrativo, RH e financeiro do projeto contra a malária nas regiões de Kinyiya e Ryansoro. A partir de sua experiência no terreno, ela conta como as diferenças culturais agregaram para seu olhar sobre o mundo e sobre si mesma:

“Não, nós não somos todos iguais. Talvez, em algum lugar do futuro, nós atinjamos essa utopia de sermos um único povo habitando este planeta. Mas hoje não. Nós não somos todos iguais.

Africanos. Europeus. Brancos. Negros. Indígenas. Orientais. Americanos. Latinos. Temos que nos reconhecer como semelhantes, porém, precisamos aceitar que temos nossas origens enraizadas em contextos, mundos, histórias, cicatrizes, privilégios, guerras, riquezas, culturas, karmas e responsabilidades únicas nesse planeta.

Cada um de nós temos nossas características pessoais identitárias, nas quais gostamos de nos apegar e usamos para descrever nosso lugar nesse mundo. Eu sou Brasileira. Sou Latina. Mas aqui na África eu sou Muzungo. Sou Muzungo como qualquer europeu, americano ou estrangeiro que ande por aqui. Sou loira de pele branca, uso roupas estranhas, tenho tatuagens e sou extremamente privilegiada. Sou uma Muzungo avistada a quilômetros de distância, e sou lembrada disso a cada 2 passos que dou em qualquer lugar por aqui.

A palavra Muzungu vem de Swahili, onde ‘zungu’ é a palavra usada para descrever quem gira sem parar no mesmo lugar. Aquele olhar perdido e atordoado dos primeiros brancos que chegaram na África Oriental para explorar o comércio local pode ter sido o que deu origem à adaptação da palavra que os povos daqui usam para descrever qualquer pessoa branca. Na visão deles, essa “gente estranha” parecia vagar sem rumo pelas suas terras e parece que de lá para cá não mudou muita coisa, a não ser o fato do termo ter se espalhado e ser usado em praticamente todos os países do leste da África.

No primeiro dia que saí para caminhar aqui na pequena Vila de Kinyinya, no extremo leste do Burundi, pude compreender que eu sempre seria um objeto de muita curiosidade, diversão, encanto e inclusive medo. As crianças são as protagonistas. Onde você vai elas gritam: “Muzungo”. “Bonjour, Muzungo”. “Amahoro, Muzungo”. E para todas, a gente sorri e responde gentilmente. As reações são diversas. Algumas crianças, e sim, adultos também, riem sem parar. Eu nunca sei se estão rindo de nervoso ou se somos realmente seres muito engraçados. Algumas crianças seguem você pela simples diversão de andar como uma sombra atrás de um Muzungo. Algumas choram e saem correndo assustadas para debaixo das saias de suas mães. Geralmente as menores. Para essas, nós devemos parecer verdadeiros seres de outro planeta.

Mal sabem elas que eu estou tão encantada e perplexa quanto elas. Gostaria de poder me aproximar mais, queria poder tirar foto de tudo e todo mundo. Porém, não faço isso. Reconheço bem o meu lugar de Muzungo. Sou eu a estranha. Sou eu quem estou aqui pedindo sempre licença para compartilhar da sua terra e do seu mundo. É necessário ter muita consciência desse lugar. Depois de algum tempo, pode ser cansativo lidar com esse comportamento. Mas faz parte compreender que não, nós não somos todos iguais. Caminhar por essas terras como Muzungo é um constante exercício de consciência de classe. Temos que compreender o que representamos aqui. Entender todas essas diferenças e respeitar o direito deles de nos tratarem sim como diferentes e como objetos de fascínio, às vezes de medo e sempre como uma possível fonte de renda. Pois os Muzungos aqui neste mundo foram os colonizadores, e por mais que eu me sinta distante disso, aqui eu me sinto sempre um pouco colonizadora.

Sigo aprendendo como ser Muzungo nessas terras e me empenhando para redimir por erros coloniais, que podem não ter sido meus, mas estão entranhados na minha pele e nos meus cabelos loiros como constantes lembranças que somos todos responsáveis por reparar os erros do passado e construir um mundo mais empático, no qual respeitamos ao máximo cada lugarzinho em que pisamos nesse mundo. ”

 

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