“Ser parte desse projeto com MSF ampliou o meu entendimento do mundo”

Felipe (à direita) e seus colegas de trabalho em MSF após visita a vilarejos para entrega de suprimentos e supervisão de profissionais comunitários de saúde em Logo, no Sudão do Sul. ©Arquivo pessoal

O brasileiro Felipe Euzébio compartilha sua experiência ajudando a informar e engajar a população sobre cuidados de saúde em um projeto de MSF no Sudão do Sul

Estou em Yei*, uma pequena cidade no sul do Sudão do Sul. Este é o meu segundo projeto com Médicos Sem Fronteiras (MSF) e minha primeira vez trabalhando em um país africano. Apesar de todo o suporte que recebi antes da viagem – relatórios, manuais, reuniões –, sinto que não tinha a verdadeira dimensão do que encontraria aqui, pois algumas coisas simplesmente não cabem nas páginas dos documentos oficiais. Há realidades que só compreendemos estando no lugar.

Acordo cedo, como faço todos os dias. O calor já é intenso logo pela manhã, antes mesmo do Sol subir completamente. Hoje, meu destino é o aeroporto, ou melhor, o campo de terra vermelha batida que usamos para os pousos e decolagens.

Não é a primeira vez que faço esse trajeto, mas tento prestar atenção em cada detalhe, como se estivesse vendo tudo pela primeira vez. A estrada é estreita, esburacada, ladeada pela vegetação local, característica do clima tropical de savana. É curioso como, quando cheguei, não consegui registrar nada direito, talvez porque fosse informação demais para absorver de uma vez.

Agora, cada detalhe parece ter mais significado. Contemplo, pela janela do carro, as casas simples de barro com telhados de palha e as inúmeras pessoas caminhando ao lado da estrada.

Passamos por mulheres carregando baldes enormes sobre a cabeça, algumas equilibrando galões de água, outras com bebês amarrados às costas, homens armados, militares com suas roupas camufladas e adolescentes com seus uniformes escolares.

No banco da frente, o motorista se concentra nos buracos da estrada, e chegamos ao campo de pouso após cerca de 20 minutos. É um local simples, funcional. Apenas o necessário. Fico pensando em como tudo aqui parece operar assim, no limite do básico.

Não há um sistema de saúde estruturado; os hospitais e postos existentes dependem em grande parte de organizações como MSF.

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Durante o trajeto, pergunto ao motorista o motivo de tantas pessoas estarem caminhando na mesma direção, à beira da estrada. Ele me explica que se não estão indo até o centro da cidade para vender seus produtos na feira, provavelmente a maioria está indo em direção a Jansuk, na clínica de saúde primária construída por MSF.

Segundo ele, as pessoas aqui caminham longas distâncias para receber atendimento médico em nossas clínicas, pois confiam na organização e sabem que lá receberão cuidados de qualidade e medicamentos gratuitos.

Disseminar esse tipo de informação é o cerne da minha função neste projeto. Como gerente de promoção de saúde e engajamento comunitário, sou responsável por planejar as atividades e implementar a estratégia que será usada pela equipe de educadores comunitários de saúde para dialogar com as comunidades locais.

Meu principal objetivo é encontrar a melhor forma de informar a população sobre os serviços oferecidos por MSF, como acessar os tratamentos disponíveis e quais comportamentos podem contribuir ou prejudicar a saúde.

Em Yei, nossos principais desafios são a violência sexual, a malária e a desnutrição.

Fortalecendo as comunidades por meio de reuniões comunitárias, grupos de discussão e sessões de educação em saúde para crianças e adolescentes, é possível construir novas formas de lidar com os problemas de saúde enfrentados por essas mesmas comunidades.

Às vezes, nossa vivência no projeto vai além de oferecer ajuda. Ela se torna um processo de aprendizado contínuo.”
– Felipe Euzébio, gerente de promoção de saúde e engajamento comunitário de MSF

Um bom exemplo deste processo que chamamos de engajamento comunitário é o trabalho que realizamos com inúmeras mulheres grávidas na região. Ao participar de alguma atividade com a equipe de educadores comunitários de saúde de MSF, elas são encaminhadas para realizar o pré-natal em Jansuk, onde receberão não apenas a consulta e os medicamentos necessários, mas também um uma rede mosquiteira e um kit com itens de higiene, como sabão e roupas para seus bebês.

Ao fornecer um serviço que olha de forma integrada para as necessidades dessas mulheres grávidas, MSF potencializa práticas saudáveis de cuidado nas comunidades, incentivando outras gestantes a buscar o pré-natal e contribuindo para que a família dessa mulher possa também se prevenir da malária e tenha condições de manter a higiene básica.

Entretanto, não são apenas os desafios de saúde que definem nosso projeto aqui. Há também as questões de segurança. Recentemente, a situação na região se tornou ainda mais delicada. Em setembro de 2024, MSF foi forçada a suspender todas as atividades que envolviam deslocamentos até as comunidades de Yei, devido a um incidente grave.

No dia 20 de setembro de 2024, enquanto voltavam de uma atividade comunitária, dois veículos de MSF claramente identificados foram abordados por homens armados. Sob a mira de armas, nossa equipe foi obrigada a sair dos carros, e itens pessoais e da organização foram roubados. Os homens armados levaram à força um profissional de MSF e um funcionário de uma organização parceira para uma área de floresta, enquanto deixaram o restante da equipe de MSF – os motoristas – prosseguirem com seus veículos. Os dois profissionais sequestrados foram libertados com segurança 24 horas depois. Felizmente, ninguém se feriu fisicamente, mas o impacto emocional foi profundo.

Eu cheguei em Yei duas semanas após os acontecimentos que resultaram na suspensão das atividades comunitárias do projeto. A interrupção dos serviços não é apenas uma perda para nós, mas um grande problema para as pessoas que dependem da assistência médica que fornecemos.
A insegurança tornou-se, de fato, um obstáculo constante ao nosso trabalho até recentemente, algo que nenhum relatório ou manual pode antecipar completamente. Assim, à medida que me vejo envolvido no cotidiano do projeto, não posso deixar de refletir sobre o que significa estar realmente presente neste contexto.

Às vezes, nossa vivência no projeto vai além de oferecer ajuda. Ela se torna um processo de aprendizado contínuo, um convite a se transformar, a reconhecer que, em certos momentos, também podemos ser frágeis, vulneráveis, e que somos nós os beneficiados por este trabalho.

Quase todos os dias, penso nas lições sobre resiliência, sobre o que significa ser humano e, talvez o mais importante, sobre a capacidade de redescobrir nossa posição no mundo que esta experiência vem me proporcionando. Ser parte desse projeto com MSF ampliou o meu entendimento do mundo e me ofereceu uma perspectiva mais rica e mais compassiva sobre a vida.

*Texto escrito em dezembro de 2024

 

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