Quanto vale uma vida?

Escrever para o diário de bordo sempre foi, para mim, um desafio. Quando estamos inseridos em um projeto, diretamente no campo, vivenciamos tantas e tantas experiências, de tal intensidade, que, ao colocarmos em palavras, dificilmente conseguimos mostrar a extensão desta vivência. Mas estou aqui, não apenas por mim, mas em nome de todas as pessoas que, estando em seus lugares, participam de MSF e contribuem, talvez da mesma forma que eu, para amenizar o sofrimento e promover a qualidade de vida, de todas as pessoas possíveis. Por isso vou compartilhar com todos que me leem o quanto é gratificante ter o coração, a mente e as mãos voltadas não apenas para o seu entorno, sua vila, sua cidade, seu país. Somos todos iguais e merecemos ter dignidade, em qualquer lugar deste planeta.

Esta é minha segunda participação em projetos de MSF. Estou em Laos, um país incrustado entre o Vietnã e Tailândia. Já se vão quase cinco meses de convivência com um povo pacífico, muito calmo e bastante desprovido de assistência medica e social. Trabalho em lugares distantes, nas chamadas Terras Altas, onde viagens de 300 a 500 km duram três dias ou mais. As estradas são precárias ou inexistentes e agora, durante a estação das chuvas, chegar a uma vila para socorrer pessoas praticamente isoladas, seria impossível. Mas não para MSF; para buscar uma criança em risco de morte e salvá-la, nada é impossível e todas as forças são mobilizadas.

Uma das gratificantes experiências que tive aqui foi quando, num sábado pela madrugada em plena tempestade, na província de Xantai, bateram à nossa porta para pedir ajuda para uma criança que havia sofrido um acidente mais de dez horas atrás. Logo prontos, iríamos ao hospital local mais próximo, mas, para minha surpresa, a criança não estava no hospital. Ela havia, sim, sido levada ao hospital, mas, ao chegar lá, por estar muito grave, foi mandada para casa – isso mesmo: é muito comum na assistência medica daqui enviar o paciente grave e precisando de ajuda, correndo risco de morte, para casa, para morrer em casa, pois os hospitais não oferecem socorro por precárias condições e por baixo nível de conhecimento dos médicos locais. Percorremos uns dez km, o que levou mais de duas horas. Ao chegar em casa, encontramos um rapazinho em quase estado de morte, com múltiplas fraturas, inconsciente e convulsionado. Éramos quatro, e apenas eu de médica. Foi marcante, pois, nesse momento, instintivamente nos olhamos e silenciosamente fizemos um pacto de confiança pela possibilidade de salvarmos aquela vida, que poucos anos havia vivido ate então. Foram várias horas, mobilizamos tudo o que foi possível pela madrugada adentro, e montamos, dentro daquela casa feita de bambu e chão de terra batida, uma boa réplica de Unidade de Terapia
Intensiva, com cilindro de oxigênio, ventilação, medicações. Tudo só foi possível com a total colaboração de logísticos, assistentes e motoristas – somos todos Médicos sem Fronteiras! Após seis horas a criança estava mais estável e pronta para ser transportada para o hospital de referência para seguir tratamento. Transportamos a criança, já com o sol a pino. Ele ficou internado muitos e muitos dias, sempre sob nossa vigilância.

Por que eu resolvi escrever aqui hoje? Porque nesta tarde, quando eu voltava do hospital, encontrei essa criança andando, voltando da escola. Parei no caminho e chorei, junto com a mãe dele. Não podíamos nos comunicar verbalmente – eles são mongues e falam um dialeto originado na linguagem lao. Nos abraçamos e me senti também mãe daquele moleque. Foi apenas uma vida? E quanto vale uma vida?

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