O fantasma da febre de Lassa

Bo, 12 de abril de 2013
 
Dois meses completos e sigo feliz por estar aqui, me dedicando a um trabalho tão especial. Tenho trabalhado muito, mas, no final do dia, sinto-me satisfeita com tantos resultados bons, e isso me motiva!

Deixando de lado a triste realidade materno-infantil que enfrentamos todos os dias, a região de Bo também é endêmica para uma doença que poucos conhecem: a tal da “febre de Lassa” (lassa fever, em inglês). E é sobre ela que resolvi escrever hoje.
 
A febre de Lassa é uma doença hemorrágica viral. O vírus foi identificado pela primeira vez durante uma epidemia na cidade de Lassa, na Nigéria – daí o nome. A doença é endêmica em países situados no oeste da África – os mais atingidos são Nigéria, Serra Leoa, Guiné e Libéria. Aqui, em Serra Leoa, o primeiro surto foi relatado em 1996, quando 470 casos foram identificados. Claro que já deveria existir antes, mas a ajuda humanitária não estava presente… Desde então, mais e mais casos vem sendo confirmados, o que não é nada bom. O hospital de referência que trata os casos fica em Kenema, cidade próxima daqui e, por isso, todo paciente positivo do nosso hospital deve obrigatoriamente ser transferido para lá.
 
A doença é transmitida pelo rato. E, devido às condições de vida absurdamente precárias da população, é uma missão praticamente impossível erradicar o vírus aqui. Sim, por que todas as casas são construídas diretamente sobre o chão batido (onde se dorme também), com paredes de barro e, na maioria das vezes, sem janelas e portas. Como não há eletricidade, não preciso dizer que ninguém possui geladeira e nem lindos potinhos plásticos (que facilmente compramos em qualquer loja de 1,99) para guardar e preservar o alimento, certo? Resultado: os ratos fazem parte da família e de sua comida. O fato é que, mesmo caso alguém da família identifique, por exemplo, que um pão está com a marca do dentinho do rato, ela não vai jogar o pão todo fora – precisa comer! – e, sim, somente o pedacinho que está roído. E esse é um perigo muito grande: o rato pode ter feito xixi ou defecado em outra parte do pão. Outro problema é a água, que é claro que não é encanada, e fica armazenada dentro de latas ou outros reservatórios que, se não forem bem tampado, podem facilmente tornarem-se fonte de contaminação.
 
Também se pode transmitir a doença de pessoa para pessoa. A pessoa já contaminada pode passar o vírus durante relações sexuais, por meio de gotículas salivares (se espirrar ou tossir em alguém e afete a mucosa da outra pessoa – olhos, boca, nariz), se o doente vomitar em alguém (que possa entrar em contato com a mucosa) e também pelo sangue (nesse caso o indivíduo saudável teria que ter uma lesão na pele para que o sangue contaminado afetasse seu organismo). No estágio mais crítico da doença, o paciente começa a sangrar pelos olhos. É muito triste.
 
E isso significa que, como trabalhamos diretamente com pacientes graves, estamos diariamente expostos a muitas dessas possibilidades (inclusive a do vômito). Claro que por trabalharmos no hospital o risco é maior, porém, todos os profissionais daqui devem ter consciência e não deixar alimentos descobertos sobre a mesa ou o fogão. E não pensem que por morarmos em casas limpas e melhores estamos livres dos ratos, viram? Volta e meia recebemos visitas.
 
Bom, são vários os problemas. O vírus é semelhante ao do ebola, ou seja, pegou, praticamente morreu. Não achem que estou exagerando, não. As chances de cura são bem pequenas e, basicamente, são efetivas quando se descobre a tempo que o indivíduo tem a febre de lassa. Só que esse já é o primeiro problema: existe só um teste no mundo capaz de identificar se o paciente é positivo ou não e que só funciona se a pessoa estiver com a carga viral bem elevada, senão dá negativo. Ou seja, se o paciente apresentar febre e já for submetido ao teste, poderá já estar doente, mas o teste dará negativo. Segundo o protocolo, deve-se proceder com o teste no terceiro dia de febre alta e que não tenha sido minimizada e quando o teste de malária for negativo. Problema? Às vezes, o paciente já morre nesta fase, antes de saber o que o aflige.
 
O que acontece é que nosso hospital não tem capacidade para assumir os casos de febre de Lassa, porque todos os pacientes com suspeita da doença precisam ficar em isolamento total até o resultado do exame, que demora, em média, de 24 a 48 horas para ficar pronto. Nós temos uma ala de isolamento aqui no hospital – que tem acesso somente para aqueles que vestem aquelas roupas de astronauta, sabem? – para os nossos pacientes e funcionários, mas eles ficam ali somente até receberem o resultado do teste. Se o teste for positivo, são imediatamente encaminhados para o hospital em Kenema.
 
Temos uma ambulância só para o transporte de pacientes febre de Lassa positivos. Temos um médico só para cuidar desses pacientes aqui, para garantir que os protocolos estejam sendo seguidos e para estudar mais sobre essa doença, que de certa forma é bem pouco conhecida e ainda gera muitas questões sobre diagnóstico e tratamento.
 
E tem tratamento? A resposta é sim. E aqui aponto o segundo (ou terceiro ou, de repente, o quarto) problema: só existe um laboratório no mundo que fabrica o medicamento para tratar a doença e a produção (em quantidade) dessa droga é bem baixa. Ou seja, não existe tratamento para todo mundo. Tem mais gente doente do que medicamento disponível no mercado. Além do mais, o medicamento é caríssimo e absolutamente inviável para essa população pagar pelo tratamento.
 
Espero tê-los deixados melhor informados sobre essa doença que é um tanto desconhecida e muito negligenciada.

Um grande abraço e até a próxima!

Fran

Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print