A importância da comunicação olho no olho

Rebecca Slenes fala sobre a força das mulheres que conheceu na África do Sul

A importância da comunicação olho no olho

O melhor de ser promotora de saúde são as relações que construímos com a comunidade. É ali, junto às mulheres e aos jovens, nas ruas, na sala de aula, na clínica à espera para ser atendida, entre lágrimas e risadas, histórias e silêncios, que se aprende mais do que se ensina.

Trabalhar com violência sexual é um dos temas mais desafiadores em termos de promoção de saúde porque é talvez a área mais difícil de ver mudança de comportamento; se já é difícil e muitas vezes socialmente inaceitável falar sobre o tema, mais difícil ainda é mudar visões de gênero e as dinâmicas de relações íntimas. Imagine então a dificuldade para uma moça que foi estuprada chegar até a clínica e contar sua história. Foi esse o nosso maior desafio em Rustenburgo. Meu time de agentes comunitários de saúde trabalhava dia e noite fazendo a ponte entre (mulheres, crianças e homens) vítimas de violência sexual ou doméstica e a clínica onde uma equipe multidisciplinar (enfermeiras, psicólogas e assistentes sociais) oferece tratamento médico e psicossocial.

Estávamos em um grande estacionamento em frente à clínica móvel que vinha uma vez por semana àquela região. Uma longa fila de mulheres e crianças esperavam durante horas; acordavam cedo para chegar antes do carro da clínica. Sorte que nesse dia estava frio então o sol não incomodava. Conversávamos com as mulheres que estavam esperando e pulávamos corda ou chutávamos uma bola com as crianças, que ficavam muito felizes com nossa presença ali. Algumas mulheres eram encaminhadas ao “gazebo” do MSF do outro lado do estacionamento para triagem (feita pelo meu time de promoção de saúde) ou para uma conversa com a psicóloga. Eu falava inglês e perguntava se as moças na fila sabiam da nossa clínica na cidade (o inglês é uma das 11 línguas oficiais no país e é uma das línguas mais usadas). Me chamaram a atenção para uma moça que não entendia o inglês. Quando listei os idiomas que eu dominava, ela logo respondeu em português. Ela era de Moçambique e, como muitos naquela região, havia migrado para lá em busca de emprego nas minas de platina. Logo em seguida, uma moça puxou meu braço e disse que queria conversar. Fomos ao canto para ela ficar mais à vontade. Ela não escondia as lágrimas ao contar o abuso que sua vizinha sofria diariamente nas mãos do marido. Tentamos pensar juntas em uma solução para ajudá-la a chegar à clínica. Outras agradeciam a nossa presença: “aquelas palavras (…) me dão força até hoje”. São nesses momentos, olho no olho, em que nos tornamos mais humanos. São várias histórias, vários rostos, que não esqueço.

No meu último dia de trabalho, ao sair do nosso escritório em Rustenburgo, tive a sensação de que estava esquecendo algo ali. Hesitei um pouco na porta, meus olhos cheios de lágrimas. Foram 6 meses muito intensos, para dizer o mínimo. Poderia ter feito qualquer outro trabalho no exterior e não seria assim; com MSF é diferente. Impossível não dedicar sua energia, suor e lágrimas a projetos que visam restaurar a vida das pessoas mais vulneráveis. Os resultados nem sempre são imediatos, mas a satisfação é imensa. Ir embora não é fácil, sabendo que ainda tem tanto trabalho a ser feito ali. Mas sei que contribui para o desenvolvimento profissional do time e para a implementação de novas atividades. Sem dúvida, uma parte de mim ficou lá em Rustenburgo com meu time querido e com aquelas mulheres cuja força eu admiro. A saudade é grande, mas é hora de partir para outra parte do mundo, outro projeto, onde poderei contribuir e aprender ainda mais.
 

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