Criando um lar sem fronteiras

Foto: Arquivo Pessoal

João Saravia, logístico de suprimentos “supply”, descreve como é o trabalho de logística de MSF e o convívio com outros profissionais internacionais móveis no Sudão do Sul.

“Você já parou para pensar como um saco de arroz e lentilhas, água potável e, claro, os instrumentos e equipamentos médicos, como luvas, máscaras e seringas, chegam até as nossas equipes em áreas de conflito e de difícil acesso?

Pois é, isso exige uma baita operação logística. Eu não sou médico, nem tampouco um profissional de saúde no sentido clássico do termo, a não ser pelo fato de trabalhar em uma organização médica, Médicos Sem Fronteiras (MSF). Eu faço parte dos times de suprimentos e logística, e nosso trabalho, quando está indo bem, é invisível. Somos responsáveis por garantir que os profissionais de saúde e as comunidades assistidas tenham aquilo que precisam nos atendimentos médicos, onde quer que eles estejam.

Atualmente, estou no Sudão do Sul, a segunda maior operação de MSF no mundo em termos de investimento. MSF tem 16 projetos ativos nesse contexto, e nossas operações por aqui começaram em 1983, quando esta região ainda não era o país que é hoje.
Esses projetos não se iniciaram ao mesmo tempo. Ao longo de todo esse período, eles foram sendo criados aos poucos, um a um, como uma operação independente. Hoje, vemos a necessidade de coordenar os esforços nesta região, e meu trabalho aqui se soma a esse esforço de centralização de algumas das atividades.

Meu papel é identificar para quais coisas faz sentido buscar por fontes de fornecimento conjuntas (de onde vamos trazer o arroz, as lentilhas, combustível, itens de limpeza, quem é nosso provedor de internet, quem faz o nosso frete aéreo, terrestre e fluvial, e assim por diante) para todos os projetos. Também sou responsável por selecionar e monitorar esses fornecedores e prestadores de serviço.
Cheguei em Juba, a capital do Sudão do Sul, no início de junho deste ano cheio de disposição para fazer análises estratégicas e colocar em prática esse esforço de centralização. Encontrei equipes muito interessadas em colaborar, que veem com muito bons olhos esse trabalho coordenado. Portanto, minha missão principal por aqui está indo muito bem, obrigado.

No entanto, ao chegar, percebi que eu poderia contribuir com uma segunda função. Logo reparei que, de um modo geral, as equipes tinham sentido muito o impacto do distanciamento social imposto pela COVID-19. Isso parece óbvio, pois a maioria de nós, independentemente de onde estamos no mundo ou do que fazemos, sentimos esses impactos. Só que as equipes de profissionais internacionais móveis de MSF têm algumas peculiaridades que tornam esse desafio ainda maior.

Estamos todos longe das nossas famílias e dos nossos amigos. Não temos como ficar “em casa”, porque nossa casa não é aqui. Nossa rotina é sair de manhã de onde estamos hospedados e ir ao escritório ou à instalação médica onde estamos alocados. Passamos o dia lá e voltamos para o local de hospedagem. Além das medidas de isolamento social, a circulação pelas cidades onde estamos é geralmente bem limitada, pois estamos em áreas de alto risco.

Assim, logo que cheguei, fiz 10 dias de quarentena e, quando fui liberado, visitei a cozinha de onde eu fico hospedado para conhecer e agradecer aos cozinheiros que haviam levado (uma ótima) comida para mim durante aqueles dias. Reparei que tínhamos lindos abacates, tomates, cebolas, limões, alhos e outros vegetais e frutas à disposição (em seguida, claro, fui descobrir de onde eles vinham: Uganda, Quênia, Congo e daqui mesmo). Então, resolvi preparar um guacamole (uma das minhas receitas infalíveis, pois sempre agrada e reúne as pessoas) para a equipe que mora na mesma casa que eu.

Não foi surpresa, quase todos apareceram e havia uma alegria diferente nesse encontro. O guacamole estava bom, mas não era só isso, claro. Logo percebi pela conversa e pelo comportamento de todos que esse convívio ao entorno de uma refeição não era algo comum para esse time. Tão simples quanto isso: eles raramente comiam juntos por causa dos protocolos de distanciamento social. Apesar de algumas flexibilizações nos protocolos, como poder ter um convívio mais próximo com quem está na mesma casa, eles haviam perdido esse hábito depois de mais de 12 meses de distanciamento.

Percebi, então, que eu podia fomentar mais esses encontros, para que o pessoal pudesse ter um pouco mais de alívio e bem-estar, enquanto estamos tanto tempo longe de casa vivenciando tantas situações difíceis. Tirei proveito da minha posição que exige que eu tenha contato com todos os projetos e equipes e, carioca que sou, organizei um churrasco que misturava pessoas de diversos projetos, depois de conseguir a autorização dos coordenadores médicos, que definiram os protocolos de segurança de saúde.
Foi um momento muito especial, em que pude ver muitas pessoas que se conheciam apenas por e-mail ou videoconferências se encontrando pessoalmente e tendo um convívio próximo pela primeira vez. Foi muito tocante ver como uma coisa simples deixava todos tão felizes e podia fazer tanta diferença.

Esse evento acabou estimulando outras equipes a fazer o mesmo, e o convívio social por aqui tem aumentado bastante, ainda que com muita cautela e seguindo todos os protocolos de segurança. Hoje, como em toda parte, há momentos em que há mais abertura e momentos que há menos, ainda que os números de casos sejam baixos neste país.

Meu guacamole entrou na agenda extraoficial semanal, sendo servido todos os domingos desde aquele dia em junho. É comum recebermos visitas de outras equipes, e esse convívio segue sendo muito positivo.

Aos poucos, venho conseguindo integrar as nossas cadeias de suprimentos e, de quebra, estou ajudando a agregar às nossas equipes espalhadas por Juba e no resto do país. E agradeço aos que vieram antes de mim e cuidaram para que o fornecimento de abacate e vegetais frescos estivesse em perfeita ordem. Quando estamos tanto tempo longe de casa, cada detalhe faz muita diferença”.

Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print