Saúde mental na Síria: técnicas adaptadas para crianças

Psicóloga de Médicos Sem Fronteiras utiliza método lúdico para se aproximar de seus jovens pacientes

8 de novembro de 2013 – Para estabelecer um diálogo com seus pacientes, a psicóloga Charlotte, da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, utilizou, durante o período em que esteve na Síria, um livro que conta histórias baseadas em guaxinins.

“Usei um livro que ajudou muitíssimo meu trabalho com as crianças. É a história de um pequeno guaxinim que ficou traumatizado depois de vivenciar uma situação terrível e aterrorizante sem especificar a tal situação, para ser aplicável de forma universal. À medida que a história evolui, o livro faz uso de ilustrações belíssimas para representar as consequências diárias de uma experiência traumática.

O pequeno guaxinim não entende o que aconteceu com ele. Ele não se sente bem e faz seu melhor para esquecer o ocorrido. Ele consegue por um tempo, mas, logo se sente mal novamente. Perde seu apetite, fica com dor de barriga, triste e ansioso sem razão aparente e faz tudo em excesso – corre rápido demais, canta alto demais – para esquecer. Ele não consegue dormir e, quando cai no sono, tem pesadelos. Isso o deixa muito irritado e ele começa a ter problemas na escola e ele é repreendido com punições e castigos, que o deixam ainda mais triste. Ele fica perplexo e não entende o que está acontecendo com ele.

Felizmente, seus pais o levam para encontrar uma guaxinim que o escuta atentamente. Às vezes, os guaxinins adultos sabem fazer com que as crianças falem sobre seus pensamentos e emoções. Enquanto ele está com a moça guaxinim, ele brinca, conversa e desenha, o que o ajuda a achar uma forma de se desvencilhar de suas emoções mais confusas. Ela pede que ele explique seus desenhos e garante a ele que a coisa terrível que o aconteceu não é sua culpa e, então, ela o elogia, porque sabe que é difícil falar sobre tudo aquilo que o está corroendo. Ele começa a se sentir melhor, mais forte, menos nervoso, dorme bem e não tem mais tantas dores de barriga. Ele não esqueceu as coisas terríveis que viu, mas não pensa mais nelas o tempo todo.

As ilustrações do livro são belíssimas e bastante objetivas, por isso, ainda que o texto esteja em inglês, a história é fácil de entender, mesmo para crianças que não sabem ler. Tudo o que tive que fazer foi mudar o nome do pequeno guaxinim para um nome em árabe: Ahmed.

Eu dei o livro a uma menina de seis anos que viu seu irmão ser atingido por uma bomba. A intérprete e eu contamos a ela a história e mostramos as figuras. No final, eu perguntei de quais páginas ela tinha gostado mais. Primeiro, ela me mostrou a figura do guaxinim com os olhos bem abertos, quando não conseguia dormir. A segunda figura que ela mais gostou era a do guaxinim reclamando de dor de barriga. E depois uma em que ele está desenhando no consultório da guaxinim. Por último, ela aponta uma figura em que o guaxinim está se alongando no sol, depois de uma boa noite de sono. Naturalmente, ela queria levar o livro com ela depois da sessão e eu, muito feliz, o dei a ela e pedi que o lesse com seus pais. As ilustrações ajudaram-na muito no processo de aceitar o que havia acontecido e nós lemos o livro diversas vezes durante nossas sessões.”

Quando a língua deixa de ser um obstáculo
Charlotte não fala árabe e, por isso, uma intérprete prestou assistência durante suas conversas com os pacientes. Houve apenas uma exceção, em que Charlotte falou em francês com um pequeno bebê.

“S. tinha apenas cinco meses, filha de pais pobres que decidiram deixar seu vilarejo após a ocorrência de diversos bombardeios. Assim que chegaram ao vilarejo vizinho, uma bomba atingiu o carro. Todos os passageiros – o pai, a mãe e três dos onze filhos do casal – foram mortos, menos S. Sua perna fora arrancada e precisou ser amputada na altura da coxa. Uma de suas irmãs mais velhas é quem cuida dela, atualmente. Com 19 anos e com um ferimento no pé, consequência de um míssil, ela tem seu próprio bebê, de oito meses. Agora, ela cuida dos dois bebês e os amamenta. A solidariedade no hospital é incrível. Por exemplo, quando a irmã mais velha estava exausta para amamentar S., outra mulher da ala o fez. A criança rapidamente tornou-se mascote do hospital.

Desenvolvi uma conexão muito forte com essa pequena menina. A equipe médica do hospital havia me contado sobre sua história antes que eu a conhecesse e disseram que ela chorava muito – talvez por conta da dor fantasma causada pela perna amputada.

Quando a vi pela primeira vez, peguei-a em meus braços para estabelecer contato físico e, falando em francês, contei a ela o que a tinha acontecido. Ela escutou atentamente e pareceu que seus olhos me atravessaram, que ela podia ver minha alma. Foi um momento de muita energia e especial. Todas as mulheres a nossa volta também escutavam minhas palavras, proferidas em uma língua completamente estranha para elas, sem conseguir compreender, mas absorvendo a mensagem, assim como S.

Então, eu a olhei nos olhos e a segurei em meus braços. Eu queria colocar em palavras as terríveis coisas pelas quais ela tinha passado. Eu disse que ela não tinha tido sorte, que ela havia passado por uma experiência muito triste e que não veria seus pais novamente. Que ela deve ter se sentido absolutamente aterrorizada, que deve ter ouvido um barulho ensurdecedor e visto e sentido o calor intenso das chamas. E eu disse que ela não tinha como entender o que estava acontecendo, que não foi sua culpa e que ela teria de ser muito corajosa. Ela entendeu minha entonação, sentiu-se apoiada e esboçou uma expressão de confiança quando eu disse que a compreendia, que sabia que ela devia ainda estar terrivelmente assustada.

E ela, então, me respondeu. Ela conversou mesmo comigo, disse algo. Foi um tipo de comunicação, um diálogo entre ela e eu. Falei com ela de novo e ela respondeu. Eu disse a ela que ela tinha muito o que falar. Isso durou diversos minutos, enquanto as mulheres nos observavam maravilhadas. Segura ali em meus braços, ela adormeceu. Ela dormiu tranquilamente durante bons cinco minutos para, em seguida, ficar agitada. De repente, ela se encolheu e sua expressão facial estava terrível. Será que estava revivendo a explosão? Quando acordou, ela me analisou novamente com seu olhar esfuziante e começou a balbuciar.

Eu a via regularmente, sem perder uma única oportunidade. Ela era a queridinha do hospital e passava dos braços de um para o outro. Lembro-me de um momento particularmente marcante quando um paciente ferido, um combatente, a pegou em seus braços e disse bonitas palavras a ela em árabe, que significam ‘você é o pequeno tesouro deste hospital’.

Então, um dia eu dei um urso de pelúcia a ela e ela ficou muito feliz. Não há brinquedos no hospital e isso é difícil para as crianças. Elas estão sofrendo, choram, precisam de suas mães. Quando veem um enfermeiro ou médico, pensam que vão sentir mais dor, ficam com medo porque o tratamento não é fácil. S. olhou para mim com seus olhos impenetráveis e depois para o urso e sorriu. Ela agarrou suas orelhas e o abraçou tão fortemente que seus dedos ficaram brancos. E, então, ela levou-o à boca, como a maioria dos bebês faz, com um olhar questionador e encantado, como quem diz “o que é isto, um brinquedo? É meu?”. Ela brincou com ele por cerca de 15 minutos, um longo período para uma criança de sua idade, já que elas não se mantêm concentradas em nada por mais de cinco ou dez minutos.
 
Quando ela deixou o hospital, foi morar com sua irmã de 19 anos e outros parentes em uma casa para dez pessoas, onde viviam, no entanto, entre 20 e 30 pessoas. S. retornou ao hospital de tempos em tempos para trocar os curativos e fazer fisioterapia. O psicólogo sírio tem conseguido acompanhá-la desde que fui embora.
E o que vai acontecer com ela agora? Como vai aprender a andar? Como sua família vai comprar a prótese de que ela vai precisar? E, à medida que for crescendo, ela vai precisar de próteses de diferentes tamanhos.”

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