Dizendo as coisas como elas são: por que comunicamos

A diretora-executiva de MSF-Estados Unidos, Avril Benoît, fala sobre a importância da comunicação para a organização

Dizendo as coisas como elas são: por que comunicamos

O pedido geralmente ocorre depois que alguém em uma crise humanitária conta sua história e se abre sobre como ele ou ela e seus filhos estão sofrendo – depois de perceber que Médicos Sem Fronteiras (MSF) pode e quer contar o que está acontecendo ao mundo. Como humanitários, fizemos essa escolha há muito tempo. Falar agora é tão enraizado em nosso trabalho quanto salvar vidas e aliviar o sofrimento por meio de ações médicas.

O conceito de témoignage, ou “testemunho”, é um pilar central da nossa identidade. A organização foi fundada por um grupo de médicos e jornalistas que se propôs a criar um novo tipo de organização humanitária. Acreditamos que temos uma responsabilidade ética de oferecer nossa perspectiva única em primeira mão sobre o que estamos vendo e fazendo no terreno e falar com um senso de urgência para evitar maiores danos. Nossa disposição de compartilhar também nossas próprias limitações e incertezas, para dizer como as coisas realmente são, cresce a partir de um compromisso com relatos honestos e transparentes.

Vinte anos atrás, em 10 de dezembro de 1999, MSF recebeu o Prêmio Nobel da Paz por seu trabalho humanitário pioneiro. James Orbinski, então presidente do conselho internacional de MSF, iniciou seu discurso de aceitação pedindo às autoridades russas que parassem de bombardear civis na Chechênia. Ele explicou por que MSF considera necessário se manifestar: “Não temos certeza de que as palavras possam sempre salvar vidas, mas sabemos que o silêncio certamente pode matar”.

Em 2019, falamos sobre várias questões prementes, incluindo a necessidade de políticas mais humanas para lidar com a crise global de refugiados e migrantes. Nós nos esforçamos para combater narrativas falsas que existem – dos Estados Unidos à Europa, da África à Ásia – sobre pessoas que são forçadas a fugir. Buscar segurança não é crime. MSF presta assistência médica a refugiados e pessoas deslocadas em todo o mundo. Cada vez mais, vemos que as pessoas em movimento estão tentando sobreviver não apenas aos desafios extremos da jornada, mas às cruéis políticas de dissuasão adotadas pelos governos que tentam impedir a entrada de migrantes e solicitantes de asilo. Compartilhamos o testemunho de nossos pacientes, incluindo histórias de violência e abuso em centros de detenção da Líbia, em campos de refugiados em Bangladesh e ao longo das rotas de migração pela América Central e México.

Criticamos publicamente a resposta internacional à atual epidemia de Ebola na República Democrática do Congo por não conseguir controlar o surto. Apesar de prometer novas vacinas e tratamentos para o Ebola, as taxas de mortalidade ainda são muito altas. As pessoas estão morrendo em suas comunidades porque não vão aos hospitais quando ficam doentes. Apontamos uma série de questões que contribuem para a desconfiança da comunidade, como a implantação maciça de recursos financeiros focados apenas no Ebola em uma região negligenciada que sofre de outras necessidades urgentes de saúde. Nós mesmos estamos comprometidos em fazer muito mais para ganhar a confiança da comunidade.

Em outubro, convocamos a coalizão liderada pela Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos a reconhecer – ainda que tardiamente – sua responsabilidade, mas evitaram a verdadeira responsabilização por um ataque mortal em 2016 ao hospital Shiara, apoiado por MSF, no norte do Iêmen. A coalizão atingiu o hospital Shiara, no distrito de Razeh, com um míssil em 10 de janeiro de 2016, matando seis pessoas e ferindo oito. A investigação de MSF concluiu que não havia motivo justificável ou legítimo para o ataque. Desde a escalada da guerra no Iêmen em março de 2015, os ataques aéreos da coalizão atingiram outras quatro unidades de saúde mantidas ou apoiadas por MSF e uma ambulância de um hospital apoiado por MSF. Tais ataques, que violam o direito internacional humanitário, matam e mutilam civis e ameaçam serviços médicos vitais para os doentes e feridos. O sistema público de saúde do Iêmen entrou em colapso, contribuindo para surtos regulares de cólera e outras doenças evitáveis.

Comunicar sobre uma crise aguda tem seus limites. Não impede uma milícia armada de atacar a população, nem o vírus Ebola de infectar parentes durante o luto. Então, qual é o ponto?

Às vezes fica claro: denunciamos, confrontamos ou influenciamos os principais tomadores de decisão. Alertamos a comunidade internacional para violações ou atrocidades em massa, como o bombardeio de hospitais. Quando as políticas do governo agravam o sofrimento dos mais vulneráveis no mundo, lembramos de maneira clara suas responsabilidades. Retransmitimos as vozes de nossos pacientes para que aqueles em posições de poder nunca possam dizer: “Não sabíamos o que estava acontecendo”.

Às vezes, trata-se de chamar atenção para uma crise negligenciada, como a necessidade de tratamentos novos e acessíveis para a tuberculose – o principal assassino infeccioso do mundo. Também comemoramos a coragem dos sobreviventes da tuberculose resistente a medicamentos, que se tornaram responsáveis pela mudança em benefício de outras pessoas. Histórias de sucesso, de cura, nos encorajam a continuar tentando e inovando.

Visitei recentemente o Haiti, cuja entrada em uma nova espiral de angústia econômica, protesto e violência está levando MSF a reiniciar as operações no hospital de trauma de Tabarre, na capital Porto Príncipe. O hospital está programado para abrir suas portas no fim de novembro. Também continuamos mantendo um hospital de queimados e uma enfermaria ambulatorial em Porto Príncipe. Oferecer cirurgia gratuita e que salva vidas, assim como cuidados críticos em um ambiente urbano repleto de gangues, exige que falemos localmente, no nível da comunidade, sobre a importância de permitir que ambulâncias e equipes médicas se movimentem livremente e com segurança.

Às vezes somos criticados por sermos políticos demais. Afinal, nossa carta afirma com orgulho que MSF observa neutralidade e imparcialidade em nome da ética médica universal e do direito à assistência humanitária. No entanto, acreditamos que os princípios de neutralidade e imparcialidade não exigem que permaneçamos calados diante de abusos. Nossa decisão de falar é sempre guiada pela missão de MSF de aliviar o sofrimento, proteger a vida e a saúde e garantir o respeito por todos os seres humanos e o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada.

Esse compromisso de comunicar nos aproxima de nossos pacientes e das comunidades que atendemos.

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