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Fome/Iêmen

8,5 milhões passam fome no Iêmen, na pior crise humanitária do planeta

A guerra no Iêmen já deixou mais de 10 mil mortos (cerca de 2 mil crianças), 53 mil feridos e mergulhou a população do país em uma situação miserável. Segundo Hervé Verhoosel, porta-voz do Programa Mundial de Alimentos (PAM), cerca de 8,5 milhões de iemenitas não conseguem mais se alimentar. Entre eles, quase meio milhão de crianças.

Mulher iemenita segura seu filho subnutrido no centro de tratamento do hospital al-Sabeen, em Sanaa, no Iêmen, em 6 de outubro de 2018.
Mulher iemenita segura seu filho subnutrido no centro de tratamento do hospital al-Sabeen, em Sanaa, no Iêmen, em 6 de outubro de 2018. REUTERS/Khaled Abdullah
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Segundo a ONG Save The Children, cerca de 100 crianças morrem por dia de fome e de doenças variadas, sem acesso a medicamentos. “Se a situação permanecer inalterada, podemos ter outros milhões de subnutridos nas próximas semanas no Iêmen”, declarou Verhoosel, em entrevista à RFI.  A subnutrição e a fome, que vêm produzindo imagens que chocaram o mundo nas últimas semanas, têm uma causa em comum: o violento conflito armado entre a coalização árabe, apoiada pelo governo iemenita, e os rebeldes houthis. A ONU considera a situação no Iêmen, o “primo pobre” do mundo árabe, como a maior crise humanitária do mundo.

Quase três milhões de pessoas já foram obrigadas a deixar suas casas, segundo informações do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em um relatório divulgado pela Anistia Internacional em 2017. O conflito divide o país desde 2014. Depois de anos de caos e violência, os rebeldes xiitas, conhecidos como houthis, tomaram a capital, Sanaa, forçando o governo a se mudar para a cidade portuária de Áden, no sul.

Relatos do “inferno” chegam de várias cidades do Iêmen, especialmente de Sanaa e Hodeida, esta última um porto estratégico no leste do país, controlada pelos rebeldes houthis, onde a coalizão árabe intervém com fortes bombardeios, a pedido do governo iemenita, numa tentativa de retomar o controle do local, onde se encontram os principais campos de petróleo do país.

Entrevistada pela RFI nesta terça-feira (6), a moradora de Hodeida, Manel Qaid, conta que os habitantes se preparam para o pior. “É como se as pessoas aceitassem o seu destino. A internet foi cortada e não conseguimos mais ter notícias dos outros. Não sabemos mais o que acontece à nossa volta”, relatou.

“Os bombardeios se intensificaram desde sábado (3). Desde esse dia, a artilharia aérea e no solo começam a atirar quando o sol se levanta e continuam durante todo o dia. Podemos escutar os helicópteros o tempo todo, é aterrorizante”, relata a jovem. “Desta vez, apesar da intensidade dos combates, as pessoas preferiam permanecer em suas casas. Temos medo de nunca mais podermos sair de Hodeida. Alguns afirmam que a única rota para deixar a cidade foi interceptada, não sabemos se é verdade”, diz Manel.

Uma família iemenita que foge da violência no Iêmen leva seus pertences enquanto desembarca um navio no porto de Bosasso, na região de Puntland, na Somália, em 16 de abril de 2015.
Uma família iemenita que foge da violência no Iêmen leva seus pertences enquanto desembarca um navio no porto de Bosasso, na região de Puntland, na Somália, em 16 de abril de 2015. REUTERS/Feisal Omar

Fome e epidemia de cólera

Além da guerra, dois outros fantasmas pairam sobre a população: a fome e a epidemia de cólera. No último dia 18 de outubro, o vice-secretário geral da ONU, Mark Lowcock, declarou que 8,5 milhões de pessoas no Iêmen sofriam de uma situação de “insegurança alimentar grave”, entre elas 400 mil crianças, e que necessitavam urgentemente de ingerir nutrientes. Em 2017, dezessete milhões de pessoas já sofriam com a escassez de alimentos e sete milhões passavam fome. Segundo a Anistia Internacional, Desde o começo do surto de cólera em 2016, quase 2.000 pessoas já morreram em consequência da doença.

Mas, segundo Caroline Seguin, coordenadora de operações da ONG Médicos sem Fronteiras (MSF), estes números estariam defasados. “A realidade do Iêmen está totalmente distorcida, em parte porque o acesso de jornalistas ao país é rigidamente controlado pelas autoridades e, portanto, muito limitado”, afirmou a especialista em entrevista de 24 de outubro ao site da organização. “Muitas áreas do país são inacessíveis. Isso se deve a questões de segurança, como ataques aéreos e conflitos, mas também a razões administrativas e políticas, pois o acesso a essas regiões depende da boa vontade das autoridades locais”, detalhou.

O conflito no Iêmen já matou quase 10 mil pessoas, a grande maioria delas civis, e feriu mais de 55 mil no que a ONU descreveu como a pior crise humanitária do mundo.
O conflito no Iêmen já matou quase 10 mil pessoas, a grande maioria delas civis, e feriu mais de 55 mil no que a ONU descreveu como a pior crise humanitária do mundo. Reprodução 24/ © AFP / Arquivo

Quem são os houthis?

Minoria xiita, originária das montanhas no nordeste do Iêmen, na fronteira com a Arábia Saudita, os houthis representam cerca de 1/3 da população do Iêmen e receberam seu nome do guia espiritual e chefe religioso Badreddine al-Houthi e seu filho, Hussein, um pregador influente, morto pelo exército iemenita em 2004.

Envolvidos em uma disputa com o governo central do Iêmen desde o início da década de 2000, eles denunciam a marginalização de sua comunidade zaïdita (corrente xiita), além das desigualdades e do subdesenvolvimento dos quais seriam vítimas no noroeste do país, e em Saada, ao norte, sua base ancestral desde a Idade Média.

Além das exigências socioeconômicas, identitárias e políticas, os houthis também declaram oposição a qualquer aliança do governo iemenita com o "inimigo norte-americano", e também à interferência do poderoso vizinho saudita. O braço político dos houthis é conhecido na região como “Ansarullah”.

Apesar da assinatura de um acordo de paz intermediado pela ONU em setembro de 2015, que exigia sua retirada de Sanaa e a retomada do processo de transição, os houthis desceram para o sul do Iêmen, ampliando suas ambições políticas, confiscando o porto de Hodeida no Mar Vermelho e se aprofundando nas províncias centrais do Dharma, Ibb e Baida. A tomada da capital Sanaa foi considerada pelos milicianos houthis como uma “revolução vitoriosa para todos os cidadãos”.

Desde então, os rebeldes expandiram sua influência para o leste do país, onde estão os principais campos de petróleo, e no sudoeste, em direção ao estreito estratégico de Bab al-Mandeb, que controla a entrada sul do Mar Vermelho.

O complexo xadrez político-religioso do Iêmen

A Arábia Saudita e a coalizão de países árabes intervêm militarmente no Iêmen desde 2015, a pedido do governo iemenita, visando o inimigo comum: os xiitas houthis. Sunita, o reino saudita justifica sua intervenção como apoio ao governo legítimo do país. Mas a questão também é regional.

"A intervenção saudita realizada a partir de março de 2015 foi justificada à luz de uma possível interferência iraniana, que teria sido motivada pelo apoio aos houthis", afirmou David Rigoulet-Roze, um pesquisador ligado ao Instituto Francês de Análise Estratégica, em entrevista à RFI.

O movimento dos rebeldes xiitas, atualmente liderado pelo populista Abdel Malak al-Houthi, é acusado por seus críticos de trabalhar para Teerã, servindo as ambições regionais dos iranianos. Seus oponentes também comparam os houthis ao libanês Hezbollah, o movimento político-militar xiita pró-iraniano.

Segundo declarações de Tawakkol Karman, jornalista iemenita e ganhadora do prêmio Nobel da Paz de 2011, em entrevista ao site do canal de televisão francês France 24, o ex-presidente do país, Ali Abdallah Saleh, expulso do poder no contexto da Primavera Árabe, teria orquestrado um golpe de Estado em 2015 manipulando milícias armadas houthis, com apoio do Irã. “O Irã tenta dividir o país para aumenta seu poder na região, ele quer colonizar o Iêmen”, afirmou Karman, na ocasião.

Uma mãe com sua criança desnutrida em um centro de tratamento de desnutrição em Sanaa, no Iêmen. 07/10/18.
Uma mãe com sua criança desnutrida em um centro de tratamento de desnutrição em Sanaa, no Iêmen. 07/10/18. REUTERS/Khaled Abdullah

Violações dos Direitos Humanos no Iêmen: atrocidades de ambos os lados

Segundo relatório publicado pela Anistia Internacional em 2018, todas as partes no conflito armado iemenita cometeram crimes de guerra e outras sérias violações do direito internacional. Para a entidade, as medidas de prestação de contas foram incapazes de assegurar justiça adequada e reparação às vítimas.

O documento afirma que a coalizão militar liderada pela Arábia Saudita, que apoia o governo iemenita, continuou a bombardear infraestruturas civis e a efetuar ataques indiscriminados, matando e ferindo civis. “As forças Huti-Saleh bombardearam áreas residenciais civis de forma indiscriminada na cidade de Taiz e fizeram disparos indiscriminados de artilharia através da fronteira em direção à Arábia Saudita, ferindo e matando civis”, diz o relatório.

A Anistia afirma ainda que o governo do Iêmen, os houthis e as forças iemenitas alinhadas aos Emirados Árabes Unidos (EAU) “engajaram-se em práticas de detenção ilegais”, como “desaparecimentos forçados, torturas e maus-tratos”.

Mulheres e meninas continuaram submetidas à discriminação e a outros abusos arraigados, como violência doméstica e casamentos forçados e precoces. A pena de morte continua em vigor no país, e nenhuma informação “foi disponibilizada sobre as execuções e sentenças de morte”.

Interferência internacional

Nesta segunda-feira (5), a associação Human Rights Watch e a Anistia Internacional foram autorizadas a intervir em um processo que condena a venda de armas pelo Reino Unido à Arábia Saudita. O caso será ouvido pela Suprema Corte de Londres em abril de 2019. Evidências indicam que essas armas foram usadas em ataques a civis no Iêmen.

Segundo Clive Baldwin, consultor jurídico da Human Rights Watch, "o Reino Unido contribuiu, através da venda de armas, para uma campanha militar da Arábia Saudita que matou ou feriu milhares de civis e mergulhou o Iêmen em uma catástrofe".

Segundo a ONG War Child UK, as empresas do Reino Unidos teriam lucrado cerca de R$ 30 milhões com a venda de armas ao Iêmen, desde o início do conflito.

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