Muito aparato e pouco conteúdo na reunião ministerial da ALCA em Miami

Michel Lotrowska, representante no Brasil da campanha de acesso a medicamentos essenciais, diz que evento não discutiu conteúdo e critica o exagerado aparato policial que desfavoreceu a expressão da sociedade civil.

"Médicos Sem Fronteiras está cada vez mais preocupada com o impacto das patentes sobre o acesso das populações dos países em desenvolvimento a medicamentos necessários para salvar vidas. Apesar de ter conseguido aprovar a Declaração de Doha sobre TRIPs e Saúde Publica, em novembro de 2001, as nações em desenvolvimento ficam muito vulneráveis aos esforços de alguns países (sobretudo os Estados Unidos) de aumentar o nível de proteção de patentes em todos os países do mundo.

A Organização Mundial do Comércio estabeleceu, através do acordo TRIPS, um nível mínimo de proteção de patentes que todos os países membros precisam incorporar nas suas legislações. A declaração de Doha, por sua vez, reforça o direito de os países tomarem todas as medidas necessárias para proteger a saúde da sua população, inclusive o direito de emitir licenças compulsórias (quebrar a patente). No entanto, as propostas americanas na ALCA (Área de Livre Comercio das Américas) incluem vários capítulos que restringem a possibilidade de proteger a saúde pública sobre os interesses comerciais.

Diante deste cenário, MSF lançou uma campanha internacional contra a inclusão de um capítulo de propriedade intelectual na ALCA, pressionando os governos dos países da América Latina a não assinar o acordo com aquele capítulo. O governo brasileiro entendeu que um sistema de patente mais restritivo seria prejudicial para o país e também defendeu a exclusão do capítulo de propriedade intelectual da ALCA. Mas outros países, como o Chile, México e o Canadá, já assinaram acordos que adotam medidas prejudicais à saúde pública e querem que outros concedem os mesmos sacrifícios em troca de mercados.

O resultado da recente reunião ministerial de Miami foi uma nova visão mais equilibrada do acordo chamado de 'ALCA Light', ou ALCA 'a la carte', que contém ainda todos os capítulos inicialmente discutidos, mas com conteúdos reduzidos para os países que assim desejarem. Haveria pisos de comprometimento. Enquanto aparentemente concordam com este processo de ALCA esvaziada, os Estados Unidos iniciaram, também em Miami, processos de negociação bilaterais e plurilaterais com vários países e regiões da América Latina com vista a conseguir aquilo que terão que renunciar com o novo modelo de ALCA. Isso é preocupante, pois sabe-se que a propriedade intelectual é um pré-requisito dos Estados Unidos para a negociação de tais acordos. E o poder de barganha dos países menores é mínimo face à super potência norte americana.

Miami não foi um palco de discussão de conteúdo e sim uma reunião política onde todos buscavam êxito, apesar das divergências. O amplo aparato policial instalado não favoreceu a expressão da sociedade civil, que foi extremamente vigiada. A cobertura da imprensa local (televisão) era lamentável, associando sistematicamente as manifestações da sociedade civil à anarquia. A desproporção do esquema de segurança para o evento era chocante e o policiamento exagerado. Vale a pena ressaltar a boa vontade das autoridades do Brasil que se reuniram várias vezes com a sociedade civil brasileira presente no evento para dar transparência ao processo. Houve inclusive membros da sociedade civil dentro da delegação oficial brasileira, o que não acontece em outros países.

Daqui para frente, será necessário monitorar esta nova ALCA e em Puebla, México, sede da próxima reunião do Comitê de Negociação Comercial, haverá certamente uma nova negociação, extremamente tensa, sobre o conteúdo de cada capítulo da ALCA. A última reunião ministerial deve acontecer no Brasil em julho de 2004, para finalizar um acordo que, depois de 9 anos de negociações, redefiniu vagamente uma visão conjunta.

Não se pode dizer que os pacientes da América Latina estão 'a salvo' e que não haverá novas pressões para mais rigor em termos propriedade intelectual nesta região. O que muda é que talvez a ALCA não seja mais o acordo pelo qual os Estados Unidos consigam seus objetivos comerciais nesta questão."

Michel Lotrowska é representante da campanha de acesso a medicamentos essenciais de MSF no Brasil e participou da reunião da ALCA em Miami, entre os dias 18 a 20 novembro.

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