Governo italiano assina decreto que dificulta as operações de resgate de migrantes no Mediterrâneo Central

Organizações civis apelam às autoridades que revoguem imediatamente a medida que coloca vidas em risco.

Mohamad Cheblak/MS

Nós, organizações civis que realizam atividades de busca e resgate no Mediterrâneo Central, expressamos nossa extrema preocupação diante da tentativa mais recente de um governo europeu de obstruir a assistência a pessoas em perigo no mar.

No dia 2 de janeiro, o governo italiano emitiu um novo decreto-lei que regulamenta as atividades de busca e salvamento no Mar Mediterrâneo Central. A medida atinge em cheio as organizações não governamentais que trabalham com o resgate de migrantes no mar e que atuam de acordo com uma série de leis internacionais. Em conjunto, as entidades civis expressaram uma profunda preocupação em relação à tentativa de um governo europeu de obstruir a assistência a pessoas em perigo no mar.

De acordo com as organizações, o novo decreto-lei do governo italiano reduzirá a capacidade de resgate no mar, tornando o Mediterrâneo Central, atualmente uma das rotas migratórias mais mortais do mundo, ainda mais perigosa. O decreto impacta ostensivamente as ONGs de busca e salvamento, mas o preço real será pago por pessoas que fogem através do Mediterrâneo Central e se encontram em situação de perigo.

Desde 2014, os navios civis de resgate estão preenchendo a lacuna que os Estados europeus deliberadamente deixaram, após interromperem suas operações de busca e salvamento lideradas pelo bloco. As ONGs têm desempenhado um papel essencial para preencher essa lacuna e evitar que mais vidas sejam perdidas no mar, ao mesmo tempo em que defendem consistentemente a manutenção das leis aplicáveis.

Apesar disso, os Estados-membros da União Europeia – principalmente a Itália – tentaram durante anos obstruir as atividades civis de busca e salvamento por meio de difamação, assédio administrativo e criminalização de ONGs e ativistas.

Já existe uma jurisprudência abrangente para as atividades de resgate, nomeadamente a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS – sigla em inglês) e a Convenção Internacional sobre Busca e Salvamento Marítimo (Convenção SAR). No entanto, o governo italiano introduziu mais um conjunto de regras para embarcações civis de busca e salvamento, que impedem as operações de resgate e colocam ainda mais em risco as pessoas que estão em perigo no mar.

Foto: Anna Pantelia/MSF | Barcos infláveis de MSF realizam treinamentos de resgate durante sua oitava rotação. Mediterrâneo Central, março de 2022.

Entre outras regras, o governo italiano exige que os navios civis de resgate se dirijam imediatamente para a Itália após cada resgate. Isso atrasa outras operações de salvamento, já que os navios costumam realizar vários resgates ao longo de vários dias. Instruir as ONGs de busca e salvamento a prosseguir imediatamente para um porto, enquanto outras pessoas estão em perigo no mar, contradiz a obrigação do capitão de prestar assistência imediata às pessoas em perigo, conforme determinado na UNCLOS.

Este elemento do decreto é agravado pela recente política do governo italiano de atribuir “portos distantes” com mais frequência, que podem estar até quatro dias de navegação a partir da localização atual de um navio.

As duas medidas foram criadas para manter os navios de busca e salvamento fora da área de resgate por períodos prolongados e reduzir sua capacidade de fornecer assistência às pessoas em perigo. As ONGs já estão sobrecarregadas devido à ausência das operações de salvamento lideradas pelo bloco, e a diminuição da presença de navios de resgate resultará inevitavelmente em mais pessoas tragicamente se afogando no mar.

Outra questão levantada pelo decreto é a obrigação de coletar dados dos sobreviventes a bordo das embarcações de resgate, daqueles que expressam a intenção de solicitar proteção internacional, e compartilhar essas informações com as autoridades. É dever dos Estados iniciar esse processo e uma embarcação não governamental não é um lugar apropriado para isso. Os pedidos de asilo devem ser tratados apenas em terra firme, após o desembarque para um local seguro e após as necessidades imediatas serem atendidas, conforme esclarecido recentemente pela Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).1

Foto: Candida Lobes/MSF| Sobreviventes resgatados a aproximadamente 30 milhas da costa da Líbia. Mediterrâneo Central, novembro de 2021.

De modo geral, o decreto-lei italiano contradiz o direito marítimo internacional, os direitos humanos e o direito europeu, e deveria, portanto, desencadear uma forte reação por parte da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu, dos Estados-membros e das instituições europeias.

Nós, organizações civis envolvidas em operações de busca e salvamento no Mediterrâneo Central, apelamos ao governo italiano que revogue imediatamente o novo decreto-lei. Apelamos também a todos os deputados do Parlamento italiano para que se oponham ao decreto, impedindo assim que ele seja convertido em lei.

O que precisamos não é de outra medida com motivações políticas que obstrua as atividades vitais de busca e salvamento, mas que os Estados-membros da União Europeia cumpram as leis internacionais e marítimas existentes, bem como garantam o espaço de trabalho operacional para as organizações civis de resgate.

Organizações SAR signatárias: EMERGENCY, Luventa Crew, Mare Liberum, Médecins Sans Frontières/Doctors Without Borders (MSF), MEDITERRANEA Saving Humans, MISSION LIFELINE, Open Arms, r42-sailtraining, ResQ – People Saving People, RESQSHIP, Salvamento Marítimo Humanitario, SARAH-SEENOTRETTUNG, Sea Punks, Sea-Eye, Sea-Watch, SOS Humanity, United4Rescue, Watch the Med – Alarm Phone.

Organizações co-signatárias:
Borderline-Europe, Menschenrechte ohne Grenzen e.V. Human Rights at Sea.

1 Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Considerações legais sobre os papéis e responsabilidades dos Estados em relação ao resgate no mar, não-repulsão e acesso ao asilo, 1 December 2022, disponível em: https://www.refworld.org/docid/6389bfc84.html.

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