“É possível florir esperança em terras áridas”

Renk, Sudão do Sul. ©Arquivo pessoal

Ivana Guarezi, gerente de farmácia de MSF, conta a comovente história de Sunday, um menino de 15 anos atendido por nossas equipes em Renk, no Sudão do Sul.

Renk é um lugar que prova que até em terras áridas podem nascer lindas flores.

Meu primeiro projeto com Médicos Sem Fronteiras (MSF) foi no Sudão do Sul, país que sofre copiosamente os desgastes de anos de conflitos e exploração, onde faltam serviços essenciais de todos os aspectos. Ao sair do aeroporto, já é possível se deparar com as dificuldades humanitárias e de saúde do país e observar as estratégias de sobrevivência das pessoas na capital, Juba.

No dia seguinte à minha chegada, viajei para o projeto em Renk. Aqui, se tem o primeiro adendo: existe um sistema aéreo designado para o transporte de trabalhadores e correlatos de organizações humanitárias, o que demostra o nível de suporte que o país precisa. Sobrevoei Renk em pleno fevereiro. Vi terras secas, sem verde, sem água.

Venho de um entendimento que território vai muito além do espaço físico, trata-se das construções e relações sociais presentes naquele ambiente e o quanto de identidade ele nos confere. Mas o mesmo espaço precisa dar condições materiais de sobrevivência. E como esse local confere identidade para uma população tão plural? Refugiados, retornados, pessoas deslocadas e população local: todos comungando das mesmas adversidades.

Bem, pouco a pouco nos acostumamos à realidade e nos conectamos com os diferentes componentes da vida em Renk. Como farmacêutica, eu ficava a maior parte do tempo no hospital, formado por tendas que serviam de enfermarias para as diversas alas de saúde daquela estrutura.

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Frequentemente, eu acompanhava a avaliação dos pacientes da pediatria para dar suporte, avaliando a disponibilidade de medicamentos para cada caso e o uso dos materiais de enfermaria. Foi quando conheci Sunday. Sim, seu nome é Sunday — igual “domingo” ou “dia de sol”, em inglês. E, para mim, foi o que ele se tornou: um dia de sol, tal qual sua calorosa cidade de Renk.

Sunday é um menino sudanês refugiado que vive com HIV. Ele teve transmissão vertical, ou seja, contraiu o vírus da mãe durante a gestação. Infelizmente, ela faleceu pouco tempo depois. Essa informação é relevante, porque a condição de imunossupressão favoreceu o desenvolvimento de uma doença crônico-pulmonar que desencadeou em uma dependência do uso de oxigênio para o menino.

O pai de Sunday vive em outro estado, a trabalho. Atualmente, a responsável por ele é a avó, que mora com o neto mais velho, irmão de Sunday. Mas Sunday não mora com eles, ele vive no hospital, pois é impraticável o uso de cilindro de oxigênio fora do ambiente hospitalar, devido aos riscos de combustão, distância e frequência de reposição do cilindro.

Sunday tem 15 anos de idade. Em agosto de 2025, completou um ano morando no hospital. Sua timidez parece esconder uma certa desesperança de sair tão cedo. Mas a equipe de MSF tem trabalhado para mantê-lo assistido, otimizando e adaptando a resposta através de diferentes procedimentos e terapias.

Enquanto isso, os profissionais de saúde mental de MSF oferecem suporte a Sunday, entretendo e propondo atividades intelectuais, já que ele não está frequentando a escola, embora seja um menino extremamente inteligente. Porém, por questões de segurança, a responsável pela equipe de saúde mental foi evacuada com outros integrantes do nosso time. Me encarreguei então de estar ao lado de Sunday, não deixá-lo sozinho. É claro que isso não faz parte da minha “função como farmacêutica”. Mas é meu papel como ser humano me importar.

Sunday e eu nos conectamos ainda mais, passei a visitá-lo diariamente com meu livro de mandalas para colorir. Fizemos lições em inglês para desenvolver suas habilidades (os idiomas nativos dele são Nuer e árabe) e logo começamos a usar sua desenvoltura em comunicação para auxiliar a pediatra nas rodadas de avaliação. Ele se tornou nosso “Pequeno Dr. Sunday”.

Aos poucos, as coisas foram acalmando, e a equipe de saúde mental retornou às atividades. Mas Sunday e eu seguimos nossa amizade. Levei para ele um uniforme do time do Brasil. Sunday ficou lindo e orgulhoso.

Na minha despedida, lá estava Sunday, no meio de toda a equipe médica, e era só para ele que eu conseguia olhar. Um brilho nos olhos que pareciam raios solares, como seu próprio nome.

Espero que ele guarde no peito nosso afeto, porque eu com certeza o tenho em um lugar muito especial do meu coração. Entendi que é pelos Sundays que a gente faz o que faz. E que são eles o verdadeiro símbolo de que em terras áridas é possível florir sentimentos e esperança.

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