Por que as crianças de Borno, na Nigéria, estão desaparecidas

Por que as crianças de Borno, na Nigéria, estão desaparecidas

Por dra. Joanne Liu, presidente internacional de MSF e Natalie Roberts, gestora de operações de emergência de MSF

Muitas estão morrendo de desnutrição
Nós voltamos recentemente de uma visita ao estado de Borno, na Nigéria. Em meio à fome e aos deslocamentos, vimos que ainda havia algo mais terrivelmente errado. Nos três locais que visitamos, quase não havia crianças com menos de 5 anos de idade. Quase nenhuma. Elas não estavam nos centros de nutrição terapêutica que estruturamos para tratar a desnutrição que frequentemente as atinge. Elas não estavam nas alas de internação. Elas não estavam nas listas de consultas ambulatoriais.

Quase sempre, há crianças pequenas passeando pelos acampamentos de deslocados internos. Embora as circunstâncias variem entre as localidades onde nossas equipes médicas atuam no estado de Borno, a ausência de crianças pequenas foi constante nos locais que visitávamos. Nós só vimos irmãs e irmãos mais velhos. Nenhuma criança pequena agarrada à cintura de sua irmã mais velha. Nenhum bebê pendurado nas costas de sua mãe. Era como se eles tivessem desaparecido.

Então, para onde foram essas crianças?
Em 2013 e 2014, parte da população do nordeste da Nigéria fugiu de casa para escapar dos ataques do grupo Boko Haram. As pessoas chegaram aos milhares em Maiduguri, capital do estado de Borno, reunidas em cidades e vilarejos remotos. O governo nigeriano lançou uma contraofensiva em 2014, que se intensificou no ano seguinte. À medida que os confrontos eclodiram na região, outras milhões de pessoas foram tiradas de suas casas. Muitas foram para países vizinhos ou buscaram refúgio em acampamentos recém-estruturados. Agricultores não puderam cultivar suas terras, rotas comerciais foram bloqueadas, e os mercados, esvaziados. O fluxo de recursos em áreas controladas pelo Boko Haram foi completamente interrompido. Privados de quaisquer meios de sobrevivência, alguns morreram de fome.

A falta de alimentos e de nutrientes essenciais levou a taxas alarmantes de desnutrição. A desnutrição pode comprometer a resistência do paciente a doenças comuns, especialmente entre os que são muito jovens ou muito idosos. Não surpreende, portanto, que um surto de sarampo esteja se espalhando desenfreadamente, que as chuvas estejam trazendo casos de malária e que diarreia e a insuficiência respiratória aguda estejam atingindo um índice terrível. O resultado disso é que uma parte da população foi, de fato, amplamente dizimada.

Em junho de 2016, o governo nigeriano finalmente declarou uma emergência nutricional no estado de Borno. Porém, aqueles que passaram fome enquanto estavam retidos nas áreas controladas pelo Boko Haram continuam com fome.
Durante a nossa visita, ouvimos a mesma história repetidas vezes – sobre como o deslocamento consumiu forças e recursos da população e como bebês e crianças morreram ou chegaram perto de morrer pela combinação de desnutrição com infecções e outras doenças evitáveis. Todos são vítimas da fome.

A todos os lugares que fomos, todas as pessoas de todas as idades pediam a mesma coisa: alimento. Não era água, abrigo ou medicamentos. Eles queriam comida.

Avaliações nutricionais realizados entre maio e outubro em diversas localizações do estado de Borno revelaram que mais de 50% das crianças com menos de 5 anos de idade têm desnutrição aguda. A quantidade é de um alcance assustador, e a situação é muito alarmante.

As pessoas do estado de Borno precisam de ajuda, tanto em Maiduguri como em outros lugares. A capital tem um aeroporto e eixos rodoviários, porém o preço de alimentos básicos aumentou de forma excepcional nos últimos meses. Um número crescente de chefes de família – residentes e deslocados – simplesmente não pode pagar para comer.
 
É muito difícil enviar assistência às regiões para além da capital. Algumas áreas são isoladas e confrontos ainda se intensificam perto de locais já devastados. Os riscos a que nossas equipes se submetem em lugares como Bama, Dikwa, Gwoza e Pulka estão no limite da nossa aceitação. Viajar pelas estradas está fora de questão devido à segurança; o acesso por helicóptero é a única opção.

Ainda assim, nossas equipes assumem os riscos porque mais uma estação de cultivo acabou, os mercados continuam vazios, profissionais de saúde deixaram as cidades e instalações médicas estão fechadas. As pessoas estão desesperadas por alimentos e elas precisam de assistência médica, o que inclui vacinações de largo alcance contra sarampo e outras ações preventivas para proteger crianças.

O governo da Nigéria reconheceu a dimensão dessa crise humanitária. Agora, deve priorizar a provisão de assistência diretamente para as pessoas do estado de Borno. Uma ação massiva de assistência deve ser realizada imediatamente. E, dados os desafios envolvidos, agências da ONU, especialmente o Programa Mundial de Alimentos, devem ampliar suas intervenções.

Medidas devem ser tomadas para garantir que as pessoas consigam encontrar assistência em locais seguros, que precisam ser abastecidos de alimentos. Elas precisam, também, de liberdade de deslocamento. Mas ainda é muito cedo para enviar pessoas desnutridas de volta aos lugares que estão praticamente vazios e que, na melhor das hipóteses, recebem apenas assistência mínima.

Da forma como as coisas estão, crianças com menos de 5 anos de idade lutam por suas vidas e enfrentam um futuro sombrio e possivelmente muito limitado. Crianças mais velhas e adultos enfraquecidos são os próximos da lista. Contudo, ainda não sabemos a real e completa magnitude dessa crise causada pelo homem. Os bolsos das pessoas continuam vazios e não temos ideia das condições em que elas se encontram. A assistência precisa ser ampliada, inclusive por parte de MSF. E isso precisa continuar acontecendo amanhã, e no dia seguinte a amanhã. Até que as necessidades da população da Nigéria sejam atendidas.

Artigo publicado originalmente na revista Time.

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