Em 2016, que vidas importam?

Em 2016, que vidas importam?

O mundo está enfrentando atualmente o maior deslocamento de pessoas em décadas – quase 65 milhões foram forçados a deixar suas casas por conta da guerra, miséria ou opressão em países como Síria, Afeganistão, Iraque, Somália ou Eritreia. Uma pequena porcentagem desses homens, mulheres e crianças desesperados arriscou suas vidas em barcos superlotados e bateu nas portas da Europa. Confrontados com essa crise, os líderes europeus tiveram uma escolha: trabalhar em conjunto para oferecer asilo e ajudar aqueles em necessidade, respeitando os vários acordos internacionais já firmados sobre isso, ou enviar essas pessoas de volta a outros países, onde o público europeu não pode enxergar seu sofrimento e os líderes da Europa não precisam expor sua vergonha.

Eles escolheram a segunda opção. Assinado em março, o acordo entre União Europeia e Turquia compensa a Turquia financeira e politicamente por impedir pessoas de chegar às costas europeias e aceitar receber deportados de campos de refugiados transformados em prisões na Grécia. Nada mais que uma troca de pessoas por dinheiro e apoio político, esse acordo ofensivo representa uma abdicação histórica da Europa de suas responsabilidades morais e legais de oferecer asilo àqueles em grande necessidade.

Mesmo que estratégias de terceirização da gestão migratória não sejam novas, estamos assistindo à tentativa mais organizada jamais vista até agora de implementar a lógica cruel de mandar pessoas de volta aos territórios de onde estavam fugindo ao invés de tratá-las dignamente e dar a elas o direito – reconhecido internacionalmente – de refúgio. Agindo de tal forma, a Europa envia um sinal preocupante ao resto do mundo, pois este acordo ratifica que países podem pagar para se eximir de sua responsabilidade de prover asilo. Se isso for replicado por muitas nações, o conceito de “refugiado” deixará de existir: pessoas ficarão encurraladas em zonas de guerra, sem ter para onde fugir e salvar suas vidas, e o mundo terá retrocedido ao tempo da Segunda Guerra Mundial.

Por meio desse acordo, os líderes da UE fizeram uma escolha que deveria levantar sérias questões para seus cidadãos e para todo o mundo: em 2016, quem ainda é considerado humano? A vida de quem importa? Que peso damos para cada vida? O que aconteceu com a empatia? E para onde foi a solidariedade diante da angústia e do desespero daqueles que tiveram vidas destruídas?

O acordo também levantou questões urgentes para Médicos Sem Fronteiras, que tem prestado assistência a refugiados e imigrantes na Europa por mais de 15 anos. Insatisfeitos com medidas dissuasivas como as cercas de arame farpado, os cães farejadores e a construção de muros cada vez mais altos, os líderes europeus agora recorreram ao abuso da ajuda humanitária e da ajuda ao desenvolvimento, usando-as como instrumentos do controle de fronteiras. Isso é muito grave, e levou MSF, em protesto, a decidir não receber mais fundos da União Europeia nem de países do bloco. Mesmo que os fundos representassem uma pequena parcela do orçamento de nossa organização, financiado em mais de 90% por doações de milhões de indivíduos pelo mundo, consideramos que era o certo a fazer, se quiséssemos zelar pelo direito de asilo e os princípios da ajuda humanitária, que deve ser prestada apenas com base nas necessidades das pessoas.

Mesmo reconhecendo que existem necessidades inquestionáveis na Turquia, um país que já luta para oferecer proteção eficaz a quase 3 milhões de refugiados dentro de suas fronteiras, é importante salientar que a ajuda não pode ser reduzida a um instrumento de barganha. Refugiados não são mercadorias para serem comprados e vendidos, e a Europa não pode fugir de sua responsabilidade de prover asilo. Em vez de empurrar as pessoas de volta para o perigo, a Europa deveria usar seus consideráveis recursos para receber e proteger aqueles em necessidade, e não pagar a Turquia para mantê-los afastados dos cidadãos europeus.

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