Cúpula da ONU sobre refugiados e migrantes: o momento é de ações concretas

Cúpula da ONU sobre refugiados e migrantes: o momento é de ações concretas, e não de promessas vazias

No dia 19 de setembro, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, foi realizada a primeira cúpula sobre refugiados e migrantes da história. A declaração aprovada pelos países-membros da ONU promete uma resposta mais coordenada, mais humana e mais ágil em relação às populações em movimento, mas existem contradições entre os objetivos grandiosos da declaração e as práticas de muitos Estados que participaram da cúpula.  

Em vez de respeitar os direitos dos indivíduos e cumprir as obrigações que já existem, um grande número de governos vem adotando políticas cada vez mais restritivas e danosas, que parecem ter sido pensadas para prejudicar ainda mais homens, mulheres e crianças vulneráveis, e mantê-los o mais longe possível.

Equipes da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) assistem às consequências destrutivas disso em seu dia a dia, já que oferecem cuidados médicos em muitos dos países dos quais as pessoas estão fugindo, ao longo de suas rotas de fuga e nos países em que procuram refúgio.

Um exemplo é a faixa de deserto na fronteira entre a Jordânia e a Síria conhecida como “Berma” (acostamento). Nela, 75 mil sírios (quatro em cada cinco deles mulheres e crianças) estão retidos em condições desumanas a poucos quilômetros de uma zona de guerra. Equipes das clínicas móveis de MSF que atenderam essas pessoas nas semanas anteriores ao fechamento da fronteira, em junho deste ano, trataram mais de 200 crianças desnutridas e 500 mulheres grávidas, incluindo as que tinham gestações de alto risco e precisavam de atenção constante. Essas pessoas estão impossibilitadas de cruzar uma fronteira fechada, de voltar para suas causas por causa da guerra catastrófica em seu país e de acessar, neste momento, serviços básicos de saúde para sobreviver. O que será delas depois da Cúpula da ONU sobre Refugiados e Migrantes? Como elas serão consideradas no novo planejamento?

Em outros lugares, nossas equipes veem refugiados e migrantes aos quais é negada qualquer forma de passagem segura; por isso, eles têm que enfrentar rotas muito perigosas e, algumas vezes, morrem no percurso. Nas Américas, por exemplo, cerca de 300 mil pessoas de El Salvador, Honduras e Guatemala vão todo ano em direção ao norte para fugir de pobreza, gangues criminosas e de uma violência tão feroz quanto em qualquer zona de guerra. Elas esperam encontrar asilo no México ou seguir adiante até os Estados Unidos, mas o México, com o apoio americano, dá proteção legal a menos de 1% dessas pessoas, mandando a maioria delas de volta para o perigo em seus países de origem. Equipes de MSF no México relatam que 68% das pessoas que atenderam foram agredidas durante o deslocamento. Um terço das mulheres já foi abusado sexualmente. Será que os Estados que assinaram a declaração em Nova York vão manter essa situação?

Globalmente, muitas pessoas em deslocamento sofrem violência – que, em muitos casos, supera a violência sofrida nos países de origem. Desde que iniciaram operações de busca e resgate no Mediterrâneo, onde mais de 3.200 pessoas morreram apenas no ano de 2016, equipes de MSF resgataram mais de 35 mil pessoas – das quais uma parte crescente menores desacompanhados – do mar. Equipes médicas de MSF a bordo dos navios de resgate continuam tratando e testemunhando as consequências da violência física e psicológica sofrida pelos que passaram pela Líbia.

Pacientes descrevem encontros brutais com traficantes, guardas de fronteiras e outros predadores. Eles foram detidos, espancados com rifles, açoitados com tubos, roubados, capturados em troca de resgate ou abusados sexualmente. Estimamos que nove entre dez pessoas que resgatamos enfrentaram algum tipo de violência. Refugiados e migrantes também se deparam com a violência em outras fronteiras europeias – na fronteira da Sérvia com a Hungria, por exemplo, onde um entre três pacientes relatam ter sido agredidos, muitas vezes por autoridades locais. Será que os líderes das Nações Unidas vão oferecer a essas pessoas alternativas melhores e mais seguras? Ou será que eles continuarão levantando mais muros e formas ainda mais cruéis de dissuasão?

Seis meses depois do acordo cínico entre a União Europeia e a Turquia, tudo indica que a dissuasão continuará sendo o foco da maioria dos Estados na sua tentativa de administrar a crise global de deslocamento. Assinado pelos 28 países-membros da União Europeia com a finalidade de repelir os solicitantes de asilo da costa europeia, o acordo é aclamado como se fosse um sucesso apesar do fato de aproximadamente 60 mil homens, mulheres e crianças, a maioria fugindo de guerras na Síria, no Iraque e no Afeganistão, estarem presos na Grécia, em ilhas das quais não podem sair ou em acampamentos isolados e sem recursos no continente. Enfrentando um futuro incerto, prisões arbitrárias e condições inadequadas, essas pessoas, assim como sua saúde física e mental, vão se deteriorando com o passar dos dias.

Em maio, citando o precedente do acordo entre União Europeia e Turquia, o Quênia anunciou o fechamento do maior campo de refugiados do mundo, Dadaab, no noroeste do país, onde 350 mil somalis que fogem do conflito, da seca e de privações vivem em um limbo há anos, ou até mesmo décadas. Uma pesquisa feita por MSF em agosto de 2016 indicou que, apesar das tristes condições de vida, a maioria das pessoas prefere ficar em Dadaab do que retornar à Somália. É verdade que manter centenas de milhares de refugiados em um limbo em Dadaab, inteiramente dependentes de ajuda externa, não é uma solução, mas forçá-los a voltar à Somália é desumano e contraria o princípio de non refoulement. Será que a cúpula da ONU vai aceitar o fato de que as únicas alternativas dessas pessoas são viver em um campo em condições inadequadas ou ter que voltar a uma zona de conflito ativo? Que mudança concreta será oferecida a elas?

Esses são apenas alguns dos exemplos que podemos citar e apenas algumas das questões que colocamos diante dos participantes da cúpula. Dada o atual estado de coisas, em que a dignidade e a vida humana são pisoteadas, deveríamos ficar encorajados pelo que foi dito na cúpula da ONU. Porém, a menos que muitos governos planejem mudar radicalmente suas respostas e políticas para refugiados e migrantes, essa reunião da ONU renderá pouco mais que uma retórica autocomplacente e promessas vazias, mantendo milhões de pessoas em sofrimento.
 

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