“Tenho uma família extensa em várias partes do mundo”

Homenageado com o Prêmio Enfermagem e Direitos Humanos, vice-presidente de MSF-Brasil relata sua trajetória levando cuidados médicos no país e no exterior; “a gente não doa só, a gente recebe muito”, diz ele

“Tenho uma família extensa em várias partes do mundo”

Há 25 anos, no interior da Amazônia, as trajetórias do enfermeiro Mauro Nunes e da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) se cruzaram. Mauro trabalhava na Secretaria de Saúde do Amazonas, e equipes de MSF chegaram para ajudar no combate à epidemia de cólera que havia atingido Tabatinga, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Ali, Mauro foi contaminado pelo “vírus MSF”, e ele e a organização criaram laços que duram até hoje.

Atual vice-presidente e ex-presidente do Conselho de MSF-Brasil, Mauro Nunes acaba de receber o Prêmio Enfermagem e Direitos Humanos. O prêmio é entregue anualmente pelo International Care Ethics Observatory (Observatório Internacional de Ética na Assistência), da Universidade de Surrey (Reino Unido) e da Fundação Ethox, e homenageia profissionais de enfermagem cuja trajetória se destaca pelo trabalho com populações vulneráveis. Mauro recebeu o prêmio ontem, dia 14 de setembro, durante a 17ª Conferência Internacional de Ética em Enfermagem, na Escola de Enfermagem da USP de Ribeirão Preto.

Nesta entrevista ao site de MSF-Brasil, Mauro Nunes rememora sua vida profissional, que o levou da Amazônia a Angola e Moçambique, entre outros países. É uma vida intensa, que inclui atuações em regiões de conflitos, em epidemias, em organizações não governamentais e no sistema de saúde brasileiro. Nela, além dos conhecimentos profissionais, Mauro se destacou pelo uso de “armas” que se revelaram de grande poder: a inventividade, o bom humor e o amor ao próximo. Confira a entrevista!

O que significa esse prêmio para você?
O prêmio, de certa forma, me fez revisitar minha vida. São 25 anos com MSF, mas também trabalhei com o Ministério da Saúde, Africare, Save the Children e outras organizações. Às vezes você vai vivendo um dia depois do outro, e não se dá conta do que já fez. Por isso dediquei a o prêmio a todos os trabalhadores humanitários, especialmente aos de enfermagem. São milhões de pessoas mundo afora que fazem esse tipo de trabalho, que saem de suas casas, de suas famílias, para ajudar onde exista o sofrimento humano. E existe uma grande recompensa, não é que você só doe. Você recebe muito.  O prêmio também foi dedicado aos migrantes, refugiados, vítimas de violência nos conflitos negligenciados e às populações vulneráveis. Eu não seria a pessoa que eu sou hoje sem ter as experiências que eu tive, sem conhecer as pessoas que eu conheci. Hoje tenho uma família extensa em várias partes do mundo, muita gente em Angola, Moçambique, Nigéria, Honduras etc.

São ex-pacientes seus?
São ex-pacientes, ex-colegas de trabalho, pessoas de outras organizações. Em Urucurituba, uma cidadezinha onde eu trabalhei na Amazônia, nos anos 80, tem um monte de Maura, Elimaura, Carlos Mauro, Luís Mauro, Antônio Mauro. Foram partos que eu fiz, e as mães me homenagearam com meu nome.

Qual é sua formação?
Eu me formei em enfermagem pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em 1986. Depois, fiz pós-graduação em saúde pública e administração hospitalar. Quando me formei, já existia o fenômeno da urbanização de profissionais. Recém-formado, era difícil encontrar um bom emprego no Rio. E não havia SUS (Sistema Único de Saúde), Programa Saúde da Família, que só vierem depois da Constituição de 1988. Resolvi ir para o interior, onde sabia que faltavam profissionais.

Um amigo indicou uma pessoa da Secretaria de Saúde do Amazonas, que até falecer foi  uma grande amiga, que me convidou para ser o diretor  do Hospital  de Urucurituba. Eu disse: “Desculpa senhora, acho que deve estar havendo algum engano. Eu sou enfermeiro, acabei de me formar”. E ela: “Não, meu filho, pode vir agora”. Havia uma carência de profissionais enorme.  

Urucurituba, na época, ficava a 16, 18 horas de barco de Manaus. Mas isso no Amazonas é esquina. Tem lugar que você leva sete dias de barco. Era uma cidade muito pequena e cercada pela  floresta. Não tinha sinal de televisão, havia uma linha de telefone para toda a cidade. O hospital era pequeno, de quatro leitos: dois na enfermaria masculina, dois na feminina, onde havia ainda dois bercinhos para os partos.

O hospital tinha poucos profissionais: uma auxiliar de enfermagem, parteiras, o administrador e atendentes de saúde. Eu era a única pessoa de nível superior. E para mim foi uma grande escola. Aprendi a fazer partos.  Você tinha que tentar prestar pelo menos os primeiros socorros, porque o hospital mais próximo era em Itacoatiara, a seis horas de barco. E não tinha barco toda hora. Bom, fiquei em Urucurituba até 1988, quase 1989, quando fui para o Iranduba, uma cidade mais próxima de Manaus.  Lá já tinha médico.   

Naquela época ainda havia muitas doenças evitáveis com vacinação?
Tinha, mas não era tanto assim. Eram mais os problemas tradicionais: parasitoses intestinais, desnutrição e anemia. Para a vacinação fazíamos visitas a vilarejos vizinhos. Aproveitávamos, por exemplo, a festa do santo padroeiro, quando todo mundo se reunia, e levávamos as equipes de barco.

E depois de Iranduba?
Em 1990 fui para outra cidade, Manacapuru. Mas fiquei pouco tempo, porque uma epidemia de cólera chegou a Tabatinga, na tríplice fronteira com Peru e Colômbia. A cólera começou no Peru e veio descendo o rio. A última epidemia de cólera no Brasil havia sido na Guerra do Paraguai. Poucos se disponibilizavam a ir, e eu falei: “Eu vou”. Fui com um epidemiologista da Secretaria de Saúde, Dr. Sócrates.  

Começamos a trabalhar ali quando chegou a primeira equipe de Médicos Sem Fronteiras, que já estava trabalhando no Peru. Vieram primeiro para ver quais eram as necessidades. Verificaram que havia vontade política de combater a epidemia e havia dinheiro, mas faltava know-how. Então MSF resolveu fazer um treinamento para os profissionais brasileiros, para capacitá-los no manejo da cólera nas cidades. Viu-se que muitas pessoas morriam porque moravam em locais muito afastados, então resolveram montar uma rede de até quatro horas de distância entre um local e outro, treinando pessoas da comunidade. Na época praticamente não existiam agentes de saúde, era um programa que estava começando.

Quando eu terminei o treinamento, MSF estava precisando de alguém que conhecesse o Brasil, a região amazônica, e que falasse português, inglês e espanhol. E me chamaram para trabalhar com eles.  A Secretaria de Saúde do estado, da qual eu era funcionário, me cedeu como uma espécie de contrapartida.

E quanto tempo durou esse trabalho?
Mais ou menos um ano, até meados de 1992, quando a epidemia acabou. MSF continuou trabalhando em áreas indígenas. Eu não quis ir, mas já havia sido contaminado pelo “vírus de MSF”. Depois, MSF veio fazer uma seleção de pessoas que falassem português para trabalhar em Moçambique e Angola, porque havia uma epidemia de cólera em Moçambique. Participei da seleção, fui aprovado, e em 1993 fui para Cuamba, no norte de Moçambique.  

Moçambique ainda estava em guerra nessa época?
Não, a paz foi assinada em 1992. Mas ainda não se circulava livremente, as estradas ainda estavam cheias de minas, era preciso se deslocar de avião. Em 1994, quando terminou meu contrato, havia uma epidemia de cólera em Angola, na província de Cabinda, e para lá fui. Depois de Cabinda fui para a província de Malanje, onde ficam as quedas d’água de Kalandula, as segundas maiores da África. Me apaixonei por Angola e fiquei até 1997.

Em Malanje eu coordenei um projeto grande de MSF, com 11 estrangeiros, em áreas sob controle do governo do MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola) e da Unita (União Nacional pela Independência Total de Angola). Nós reabilitamos todo o sistema de saúde da província, nos dois lados.  Eu conhecia o governador, o vice-governador, muita gente na capital. E era também conhecido por várias autoridades da Unita na província.

E as pessoas respeitavam a sua neutralidade?   
Respeitavam, eu também criei relações de amizade. Nas horas vagas, ensinava samba para as filhas adolescentes do vice-governador da Defesa, e às vezes preparava  moqueca de peixe para um general da Unita que tinha estudado no Brasil. Meu objetivo era ter acesso. Uma das coisas de que eu mais me orgulho na vida foi ter conseguido fazer uma reunião em Malanje, na capital, com membros do governo e da Unita, para fazer o planejamento de saúde do ano seguinte. Só deixaram trazer gente da Unita para a cidade porque eu era o responsável. E depois levei uma equipe do Ministério da Saúde do governo para fazer uma campanha de vacinação dentro da área da Unita. Isso era impensável naquela época!

Quando quis sair de Angola, me ofereceram trabalhar como chefe de missão na Nigéria, país que eu já tinha visitado, mas para o qual eu queria muito voltar, por ser descendente de nigerianos. Naquela época estavam construindo Abuja, e Lagos ainda era a capital. Era um projeto de monitoramento de epidemias; estávamos montando uma rede com o pessoal local que fosse capaz de detectar epidemias de sarampo, meningite, febre amarela e cólera.  Era preciso envolver não só o governo como as lideranças tradicionais. Eu conheci 30 dos 36 estados da Nigéria. Íamos, dávamos treinamento, negociávamos com o governador, com o Obá (Rei tradicional), se era área yorubá, com o Emir, se área Haussá.

Fiquei na Nigéria pouco mais de um ano. Em 1998, a situação do conflito em Angola  começou a se deteriorar novamente. MSF decidiu fazer clínicas móveis em Malanje. Era preciso cruzar a linha que dividia os dois lados todo dia. Tinha que ser alguém que que falasse português, que falasse kimbundu, que conhecesse bem a região inteira, que fosse respeitado pelos dois lados. E quem acabou indo?

Foi quando você deixou a Nigéria?
Eu pedi para sair da Nigéria. O meu supervisor não gostou: “Você vai deixar de ser chefe de missão para voltar a ser enfermeiro de campo?”. E eu disse: “Eu sou enfermeiro. Chefiar uma missão é consequência, mas eu não vou deixar meu povo sozinho”. Eu sinto esse compromisso muito grande com Angola, tanto que já voltei várias vezes.

Daquela vez, voltei em 18 de dezembro de 1998 para fazer esse trabalho das clínicas móveis. Começamos a fazer os preparativos. Eu estava me organizando para começar em 4 de janeiro de 1999, reunido com os participantes do projeto, quando começaram os bombardeios contra a capital de Malanje. A casa onde estávamos não tinha laje, e corremos para o escritório. Logo depois, por questões de segurança, MSF teve que transferir quase toda a equipe e só ficaram duas pessoas – eu e um médico holandês. As organizações de ajuda saíram em um comboio das Nações Unidas. No dia 9 de janeiro, veio a ordem para todo mundo sair. Foram quase três meses sem nenhum acesso de profissionais estrangeiros.

A equipe nacional continuou, e conseguiu dar andamento ao que tínhamos feito.
Meu contrato com MSF foi então extinto. Mas eu não queria sair de Angola. Fui então para Londres me candidatar a uma vaga na Save the Children. Uma semana depois eu voltei, para a província de Huambo, onde havia uma crise nutricional. Pouco depois, começaram a bombardear Huambo também. Mas a Save the Children tinha uma casa com bunker, e não saímos da cidade. Fiquei quase dez meses trabalhando lá, alimentando 9 mil crianças, 18 mil refeições por dia. Isso na lenha! Porque não tinha fogão industrial ou gás.

Depois dessa nova temporada em Angola, o que você fez?
No final de 1999, vi que era necessário voltar ao Brasil por causa da minha família. Comecei a trabalhar com o Programa Saúde da Família, em um dos primeiros projetos no Rio, no Vilar Carioca, em Campo Grande. Em 2000, voltei para MSF como coordenador de saúde e fiquei por seis anos, até o fechamento do último projeto permanente no país. Nessa transição, fizemos workshops sobre a experiência de MSF no trabalho em favelas e com população em situação de rua para a Secretaria de Saúde do Rio e de outras cidades do país. O pessoal do Ministério da Saúde veio assistir, gostou e fizemos workshops em Manaus, Fortaleza, Recife, Salvador, Distrito Federal, Belo Horizonte, Porto Alegre, Aracaju, Contagem, entre outras.

Em 2007, eu tinha feito um concurso para o Ministério da Saúde e fui chamado. Desde então trabalho como enfermeiro no Hospital Federal dos Servidores do Estado. Mas não me desliguei de MSF. Em 2008, onde fui curtir minhas férias? Em Cartum. Desde então, eu faço isso. Trabalho no ministério, mas nas férias faço projetos curtos.  

O Brasil ainda tem esse problema de má distribuição dos profissionais de saúde, não?
É questão de incentivo. Quando eu fui para o Amazonas, tinham me oferecido aqui um salário mínimo, e eu fui para lá ganhando mais, com direito a casa e possibilidades de valorização profissional. Claro que eu sempre gostei de trabalhar com populações vulneráveis, por isso sou sanitarista. Mas existia uma coisa chamada gratificação de localidade. Foram  profissionais do Brasil inteiro para a Amazônia. Depois começaram a tirar as vantagens do interior e, com a implementação do Programa Saúde da Família aqui, começou a subir o salário nas periferias.

Como você compara o sistema de saúde brasileiro com o dos países em que trabalhou no exterior? Tem muita diferença?
Ah, tem!  Comparativamente, com os países onde eu fiz missão, o Brasil está em patamar muito mais elevado. Entretanto, penso que cabe aqui ressaltar que sempre trabalhei em países muito pobres e em desenvolvimento, na  imensa maioria das vezes, ou em situação de conflito ou recém-saídos de conflitos, com um PIB e renda per capita infinitamente menores que o nosso.

Mas fala-se muito em problemas de financiamento do SUS…
Minha opinião pessoal, como profissional de saúde brasileiro, é de preocupação com a criação de um grupo de trabalho para estudar um “plano de saúde popular”. O que será esse plano? Nós já pagamos muitos impostos. Passaremos a pagar mais um?  Iremos voltar à década de 50, quando todo mundo tinha que pagar pela sua assistência de saúde? Se a PEC 241 for aprovada e congelarem os investimentos em saúde e educação por 20 anos, como fazer com uma demanda que vai continuar aumentando?  Seria um desmonte do SUS e das conquistas da Constituição de 1988.

E como foi sua experiência como presidente do Conselho de MSF-Brasil?
Essa posição para mim foi como a realização de um sonho. Quando descobri MSF, lá atrás em 1991, eu sempre achei que o Brasil tinha capacidade para ser uma seção do Movimento e, assim, ser parte do Conselho Internacional de MSF.  Eu acompanhei todo esse crescimento. E temos feito um bom trabalho. Temos mais e mais um papel de destaque no Movimento Internacional, não só pelo aporte de recursos financeiros e humanos – o maior pool de psicólogos de MSF é brasileiro, sabia? Temos uma grande excelência na qualidade de médicos, enfermeiros e outros profissionais, pessoas que combinam um alto conhecimento técnico com aquela capacidade brasileira de fazer muito ainda que com pouco; e nem sempre é fácil encontrar essas duas qualidades juntas num profissional. Além disso, contribuímos de forma significativa em conhecimento principalmente a partir da BRAMU (Unidade Médica Brasileira) e também com novas estratégias de comunicação, captação de recursos e advocacy.

O que te fez, afinal, ingressar em MSF?
Duas coisas. Em primeiro lugar, as condições de trabalho, e em segundo, a democracia em MSF.  Porque não é fácil você querer fazer, saber fazer e não ter como,  como várias vezes precisei fazer  para viabilizar  estratégias de vacinação na Amazônia, que são obrigações do Estado. Eu tinha que adular o prefeito, pedir ao vereador, arranjar o barco, pedir a gasolina para poder fazer o meu trabalho. Em MSF, se eu você precisar de um tomógrafo, e isto se justificar pela necessidade da população beneficiada por seu projeto, você o terá. MSF dá condições de trabalho aonde quer que seja.

E eu posso chegar, como eu já cheguei, aos altos dirigentes e dizer o que eu penso deste ou daquele projeto sem sofrer qualquer retaliação por isso. Certa vez eu queria que o diretor-geral de MSF em Amsterdã me escutasse. Eu sabia que ele deve receber centenas de mensagens, e queria que ele lesse o que eu estava escrevendo. Então, no assunto, botei um palavrão imenso em holandês. Duas horas depois ele me liga: “O que é que está acontecendo Mauro?” Eu digo: “Eu queria a tua atenção, e sei que, no meio daquelas mensagens todas, se eu escrevesse o assunto que era você não ia me responder”. Ele começou a rir: “Só você mesmo!” Esse tipo de coisa eu não posso mandar para o secretário da Saúde, não posso mandar para o ministro da Saúde.

E tem uma terceira coisa, que para mim é extremamente importante e fala muito sobre o caráter da organização e seus membros. Não vou dizer que MSF não tenha defeitos, mas nestes 25 anos nunca soube de fraude institucional, desvio de dinheiro, roubo. Conheço praticamente todos os presidentes internacionais de MSF desde aquela época, todos têm uma vida de acordo com o que trabalharam, sem luxo ou ostentação.  Andam na classe econômica, pegam metrô, na melhor das hipóteses pegam um táxi. Ninguém anda de classe executiva, ninguém tem motorista nem mordomo em casa. Ninguém enriqueceu. Então, são essas três coisas que me fazem acreditar muito nesse trabalho e querer continuar.
 

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