O médico do meu inimigo é meu inimigo

de Jonathan Whittall, Médicos Sem Fronteiras (MSF)

O que têm em comum a Coalizão Nacional Síria, um grupo fundamentalista islâmico estrangeiro, um país do Golfo e os governos iraniano e americano? Todos estão provendo ajuda “humanitária” em diferentes escalas para o lado do conflito sírio que apoiam, mas nenhum deles é capaz de reduzir, atuando individualmente, o imenso sofrimento das pessoas e nem garantir que a sua ajuda alcance, primeiramente, os mais vulneráveis. Essa não é uma guerra simples, e não há soluções fáceis, mas o atual status quo não pode ser uma alternativa.

A resposta humanitária é reflexo da complexidade política da crise; a maior parte da ajuda enviada à Síria é percebida como unilateral, atendendo apenas um ou o outro lado do conflito. É praticamente impossível para a ajuda cruzar as linhas de frente de batalha no volume necessário para atender a imensa demanda. No momento, organizações humanitárias, de forma geral, precisam atravessar a fronteira ilegalmente para adentrar áreas sob o controle da oposição para levar ajuda e contam com o suporte de redes partidárias.

Isso é um problema, uma vez que o provedor da ajuda passa a estar relacionado à solidariedade política vinculada a um ou a outro lado do conflito. Tentar cruzar as linhas de frente sem contar com a boa vontade de todos os envolvidos significa correr o risco de ser barrado nos pontos de fiscalização uma vez que identificado como alguém que está assistindo o “inimigo” ou enfrentar bombardeios e a mira de franco-atiradores.
 
À medida que o conflito na Síria evolui, o mesmo acontece com as necessidades da população. Milhões de pessoas sofrem com a grave falta de alimentos, combustível, abrigo e água limpa. Comunidades inteiras vivem cercadas e sob constantes bombardeios. Recentemente, surtos de febre tifoide e leishmaniose têm sido reportados em áreas controladas pela oposição. Médicos Sem Fronteiras (MSF) pôde apenas fazer doações de suprimentos médicos para a região, uma vez que a intensidade dos confrontos prejudicou diretamente a capacidade de nossas equipes de alcançar as áreas afetadas.

A destruição de instalações de saúde deixou uma lacuna na área médica. Segundo estatísticas do governo sírio, 57% dos hospitais públicos foram danificados, 36% não têm mais possibilidade de funcionar e 78% das ambulâncias públicas foram prejudicadas. Muitas áreas estão dependentes de hospitais improvisados, a maioria dos quais convertidos de forma rápida – usando de mesas da cozinha a porões subterrâneos. Presenciei um trabalhador do ramo da construção civil atuando como cirurgião. Alguns desses hospitais de campo priorizam o atendimento de combatentes, deixando a população comum sem acesso a cuidados de saúde.

Em regiões controladas pelo governo, o sistema público de saúde também enfrenta grande dificuldade. As sanções internacionais congelaram ativos financeiros e transações, impossibilitando que o governo adquira suprimentos médicos internacionalmente. A Síria produzia internamente a maioria de seus suprimentos médicos, mas grande parte das fábricas está, atualmente, destruída. Em visita recente feita a Damasco, observei uma enorme escassez de suprimentos médicos nas instalações de saúde do governo e os médicos estavam com receio de trabalhar, com medo das ameaças feitas por grupos opositores, para que não deem suporte a “hospitais governamentais”.

A polarização da ajuda perpetua-se por todos os lados. Poderes regionais têm interesse em oferecer ajuda como parte de uma política de solidariedade. Governos ocidentais, recentemente, têm se mostrado mais interessados em prover suporte “não letal” à oposição armada ao invés de oferecer alimentos, que são muito necessários, e medicamentos para a população em geral. As Nações Unidas estão autorizadas a enviar ajuda apenas por meio de Damasco, e afirma depender de uma improvável resolução do Conselho de Segurança para levar ajuda sem o consentimento do governo. Atualmente, os provedores de ajuda mais ativos na Síria são as redes da diáspora, grupos ativistas e comunidades locais, que são justamente os grupos que permitiram que MSF desenvolvesse suas atividades nos últimos dois anos.

Considerando a maneira como a ajuda é ofertada na Síria atualmente, o ceticismo dos envolvidos no conflito quanto à ajuda proveniente de regiões sob o controle de seus oponentes é justificável. No entanto, essa é uma realidade originada pela negação do acesso a organizações independentes por Damasco, o que permite aos que têm motivações geopolíticas intrínsecas à provisão de ajuda esconderem-se por trás da justificativa de que não lhes resta outra opção senão entrar na Síria ilegalmente.

Damasco tem nas mãos a possibilidade de solucionar a inércia dessa situação, aceitando a livre circulação de ajuda independente por todo o país. Um acordo negociado com todos os envolvidos também é urgentemente necessário para permitir que ajuda humanitária essencial à vida das pessoas cruze a linha de frente da batalha. Sem isso, os esforços humanitários não poderão ser dissociados da complexidade geopolítica que contamina essa crise. Enquanto aguardamos a resolução do impasse, é preciso que a ajuda seja urgentemente ampliada, tanto por parte de Damasco quanto dos outros lados da fronteira. À medida que a violência na Síria segue imperturbável, o fracasso da resposta humanitária torna-se ainda mais inaceitável.

O artigo foi publicado hoje, 13/03/2013, no jornal “O Estado de S. Paulo”. Os trechos destacados em negrito foram excluídos da versão impressa, mas são parte importante da argumentação de MSF no que diz respeito à provisão de ajuda humanitária na Síria.

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