Iêmen: “A guerra tem um custo muito alto para os civis”

Dois anos depois do início do conflito, as necessidades médico-humanitárias são enormes e urgentes no país; organizações enfrentam muitos desafios para oferecer assistência

Iêmen: “A guerra tem um custo muito alto para os civis”

Candelaria Lanusse, enfermeira argentina de Buenos Aires, trabalha em Médicos Sem Fronteiras (MSF) e é consultora de saúde da organização para o Iêmen. Ela acabou de retornar de uma visita de campo aos projetos administrados pela organização na província de Hajjah, no norte do país, e na capital, Sanaa.

Como o conflito está afetando o Iêmen?
A escalada do conflito no país está afetando fortemente a população. Os dados falam por si: mais de 18 milhões de pessoas estão em necessidade de ajuda humanitária; cerca de 3 milhões estão internamente deslocadas, e centenas de milhares morreram ou foram feridas, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). A população civil está pagando um preço muito alto. A guerra também está causando medo, escassez de alimento, aumento do preço de combustíveis… O mais impressionante é que boa parte da população, provavelmente devido ao longo período de imersão em um contexto de violência e guerra, aceitou a assistência psicossocial como algo normal. As pessoas sabem que precisam desses cuidados e não têm nenhum problema em requisitá-los. Muitas pessoas foram deslocadas mais de uma vez. Elas tiveram que deixar tudo para trás. Poucos são os que não perderam um ente querido.  

Quais os maiores problemas e necessidades médico-humanitários?
Sem dúvida, há muitas necessidades que ainda não foram atendidas. A falta de segurança em decorrência de confrontos e bombardeios dificulta a provisão de assistência. O problema de acesso, devido a restrições ou atrasos em permissões e vistos para agentes humanitários, também é uma desvantagem. As pessoas estão totalmente dependentes de ajuda humanitária. As atividades econômicas do país diminuíram significativamente. Outra questão muito preocupante é o caso de doenças e infecções evitáveis, como coqueluche, que estão aparecendo com mais frequência. Isso é reflexo do colapso do sistema de saúde, que fez com que a cobertura vacinal do país ficasse bem abaixo dos padrões. A combinação de fatores como confrontos, restrições nas importação e a falta de pagamento de funcionários públicos no norte do país vem impactando gravemente o acesso a alimentos. Além disso, a população carece de acesso a tratamentos nutricionais, e as distribuições de alimentos são irregulares e imprevisíveis.

Alguns agentes humanitários apontaram para o risco de haver fome no Iêmen. Como você vê essa situação?
Os dados chocantes coletados pela ONU mostram que, no país, 1,1 milhão de mulheres lactantes estão desnutridas, enquanto 462 mil crianças com menos de cinco anos de idade sofrem de desnutrição aguda grave. É difícil para MSF fazer uma análise conclusiva. Por um lado, a deterioração da situação é evidente, visto que as pessoas foram deslocadas e, com isso, perderam seu sustento, suas plantações ou seus animais. Por outro lado, apenas os casos mais graves de desnutrição chegam ao nosso hospital, e nós não oferecemos cuidados ambulatoriais, então não temos o panorama geral. No hospital de Abs (na província de Hajjah), as equipes estão surpresas de o centro nutricional não ter atingido sua capacidade máxima de pacientes, o que possivelmente se deve ao fato de não recebermos casos de desnutrição encaminhados de áreas mais remotas. Entre março de 2015 e dezembro de 2016, nossos projetos trataram mais de 4.485 crianças com desnutrição aguda no país, que foram admitidas em nossos programas de nutrição terapêutica. Muitos dos casos que recebemos no hospital são de crianças com menos de seis meses de idade, e isso se deve à falta de alimento e também ao trauma, que faz com que muitas mulheres não consigam amamentar.  

O conflito também afetou organizações de ajuda humanitária. Como isso se deu? As pessoas têm medo de ir aos hospitais em decorrência do risco de ataques?
Dezenas de instalações de saúde foram destruídas em ataques ou combates. Quatro hospitais de MSF foram atingidos por ataques aéreos ou bombardeios entre outubro de 2015 e agosto de 2016, o que levou a uma evacuação forçada de profissionais e à interrupção temporária de serviços. Mas não só hospitais foram atacados: muitas outras estruturas civis, como mercados ou pontos de encontro sociais, foram alvejadas. Contudo, as pessoas incorporam a violência como parte de sua vida diária e continuam indo a hospitais se podem receber assistência médica, sempre dependendo da frequência de bombardeios e ataques na região em que estão. Muitos outros centros de saúde estão fora de serviço porque seus profissionais fugiram para locais mais seguros. Além do funcionamento precário do sistema de saúde, é difícil conseguir suprimentos no país. Normalmente, não podemos recebê-los por via marítima e a rota aérea é muito cara. Há, ainda, uma quantidade reduzida de materiais médicos e outros tipos de produtos no país, o que nos obriga a importar mais ou pagar preços mais altos por essas mercadorias.

Você pode explicar as atividades que MSF vem conduzindo na capital e no norte do país?
Em Sanaa, fazemos doações a hospitais para ajudá-los a lidar com o fluxo massivo de vítimas de guerras, ao mesmo tempo em que oferecemos treinamento e suporte para instalações médicas. Também apoiamos o programa nacional de HIV/Aids em Sanaa e outras províncias e, por meio dele, garantimos que 95% dos pacientes admitidos continuassem tendo acesso ininterrupto ao tratamento apesar do conflito. Além disso, acabamos de começar a apoiar a unidade de queimados de um dos principais hospitais especializados do país. Como muitos outros serviços, essa foi uma área afetada. Ali, as equipes recebem dois tipos de pacientes: os feridos na guerra e os que sofreram queimaduras domésticas de todo tipo. Nos hospitais em que trabalhamos nas regiões de Abs e Hajjah, na província de Hajjah, ao norte do país, oferecemos uma grande variedade de serviços e assistência. Tratamos muitas pessoas que foram feridas na guerra, o que inclui um grande número de cirurgias ortopédicas, mas também assistimos a população que sofre dos efeitos indiretos do conflito em diferentes regiões. Em Abs, por exemplo, temos um grande número de pacientes: pessoas internamente deslocadas que vivem em acampamentos ou com suas famílias em meio à população. Há um hospital rural que oferece serviços fortes de maternidade, pediatria e medicina neonatal e se tornou uma referência no oeste da província de Hajjah, visto que é a principal instalação de saúde em funcionamento na região. Temos, também, clínicas móveis focadas em atividades mais preventivas e agentes de saúde comunitária espalhados pela região para detectar emergências ou, por exemplo, casos de malária, que não podem esperar.     

No Iêmen, MSF trabalha nas províncias de Ibb, Taiz, Saada, Hajjah, Amran, Aden, Al-Dhale e Sanaa. Desde a escalada do conflito, em março de 2015, até dezembro de 2016, MSF tratou mais de 56 mil pessoas feridas pela guerra e realizou cerca de 29 mil cirurgias. Além disso, mais de 23.400 bebês nasceram de partos assistidos por nossas equipes.
 

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