De volta de Tabatinga

A psicóloga Débora Noal, que coordenou a segunda fase do projeto de Médicos Sem Fronteiras com os haitianos que chegaram no Brasil via Tabatinga (AM), conta nesta entrevista como foi o trabalho da equipe

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Depois de três meses, a equipe de Médicos Sem Fronteiras que estava trabalhando na assistência aos haitianos que migraram para o Brasil, pelo estado do Amazonas, voltou para casa. Em meados de fevereiro, após encerrarem as atividades em Tabatinga, a psicóloga Débora Noal, a enfermeira, Paula Regina Souza e Marcos Roberto Leitão, profissional responsável pela logística do projeto, foram para Manaus para trabalhar com haitianos, que de posse do protocolo de visto, documento que lhes permite viajar dentro do país e trabalhar haviam ido para capital do estado atrás de emprego. Foi uma rápida passagem de 20 dias em que MSF trabalhou junto com profissionais locais para montar uma estratégia de inserção dos haitianos no sistema público de saúde e de atendimento de saúde mental. Nesta entrevista, Débora Noal conta detalhes do projeto.

 
Que avaliação você faz do trabalho em Tabatinga?
 
Foi extremamente positivo, com resultados incríveis. A nossa primeira ação foi um levantamento para ver quem eram essas pessoas e qual o perfil de saúde, ou seja, que tipo de necessidade elas tinham em termos de saúde.  Esse levantamento nos apontou que a maioria era homem e tinha entre 20 e 35 anos. Só 22% eram mulheres. Eram pessoas saudáveis, mas que estavam passando por algum tipo de problema. O que é esperado dentro de uma população que se desloca, que está dormindo mal, comendo mal, muito ansiosa, com medo, sem trabalho… Eram problemas como doença de pele, dermatite ou dermatose, complicações gastrointestinais, dores de cabeça, dores no corpo. 
 
Depois disso, encontramos os gestores de saúde para saber que tipo de ação eles estavam propondo para atender essa população. O que a gente percebeu, então, foi que a gestão tinha dificuldades de propor e dificuldades também para saber que necessidade essas pessoas tinham. Mas com o resultado das questões que nós havíamos colocado para os haitianos, foi fácil mostrar para os trabalhadores de saúde e para os gestores de Tabatinga as necessidades daquela população em termos de saúde e de cuidados sociais e o que realmente era prioritário naquele momento. O próximo passo foi ver com os trabalhadores de saúde que necessidades eles próprios estavam tendo.
 
Em termos prático o que precisava ser feito?
 
A maior parte dessas pessoas precisava de orientações do que fazer e como fazer. Por exemplo, lá em Tabatinga não se pode beber a água da torneira, precisa ferver, clorar, manter coberta para não proliferarem vetores de adoecimento como o mosquito da malária, da dengue, leishmaniose. Era preciso explicar isso para eles. Era preciso orientar sobre como evitar que fossem picados e adoecessem por doenças como essas que acabei de citar e distribuir repelentes e mosquiteiros para toda essa população de haitianos. 
Também era preciso orientar sobre atendimento. Ou seja, onde ser atendido, explicar o tipo de atendimento que eles poderiam receber em termos de atenção primária, secundária ou terciária, como funcionam as unidades, como é o cadastramento no Sistema Único de Saúde (SUS); quem pode ser atendido… 
 
Para isso, passamos de casa em casa com agentes comunitários brasileiros e haitianos. Os agentes comunitários haitianos foram contratados por Médicos Sem Fronteira para ajudar nesse momento de transição, tanto para fazer enquete, como para orientar e serem orientados pelos agentes brasileiros. 
 
Não era uma situação fácil para esses agentes de saúde locais também…
 
Não, não era uma situação fácil. Os brasileiros que estavam recebendo esse grande número de pessoas que não falam a mesma língua, não têm os mesmos hábitos, mas que estão abertos a um processo de mudanças desde que sejam orientados para tal. 
 
Quando fomos fazer o contato com os trabalhadores de saúde para saber quais eram as dificuldades, a primeira coisa que eles apontaram foi a comunicação. Eles falavam que não conseguiriam atender porque não falavam a mesma língua. Eles também não entendiam porque os haitianos, quando precisavam de ajuda médica, procuravam apenas o hospital e não a unidade de saúde (No Haiti é comum este tipo de procedimento, visto que não existe uma rede de saúde similar à rede primaria brasileira).
 
Então era um processo também de explicar para os haitianos como funciona a rede pública no Brasil, explicar a gente começa com a rede primária, depois tem a rede secundária e se for necessário é feito o encaminhamento para a rede hospitalar, mas é importante compreender todo este processo. 
 
E o que MSF fez para melhorar o relacionamento entre os haitianos e os agentes de saúde?
 
MSF traduziu para o crioulo (língua falada no Haiti) os materiais que são usados no Sistema Único de Saúde no atendimento aos brasileiros.  Também oferecemos aulas básicas de crioulo para os agentes de saúde, sempre lembrando para eles que esse era um processo transitório e que os haitianos provavelmente iriam aprender a falar o português, mas não de uma semana para outra. Essas aulas eram apenas para ajudar nos primeiros contatos. 
 
Também ensinamos como atender uma população que se encontra em deslocamento, as necessidades em termos de saúde mental e como fazer isso de uma forma que não gerasse custos adicionais ao município e nem tivesse que criar um sistema paralelo. Ou seja, como simplesmente adequar o sistema que a gente já tem para receber esses seres humanos que vieram de outro país.
 
Quem dava as aulas de crioulo?
 
Eu e a Paula. A Paula deu a parte de crioulo e eu ensinei palavras relacionadas a acolhimento, inserção e saúde mental. Nós três compreendemos um pouco de crioulo porque trabalhamos no Haiti. O Marcos esteve depois do terremoto, a Paula esteve no início da cólera e eu estive no furacão de 2008, e no terremoto de 2010. 
 
Algumas reportagens publicadas na época diziam que havia uma preocupação dos gestores sobre as condições de saúde dessas pessoas…
 
É verdade, havia essa preocupação, por isso o levantamento que fizemos foi super importante. A gente usou a própria ficha do Sistema Único de Saúde para comprovar que as pessoas não estavam doentes. Pelo contrário, a maioria, se não todas, as pessoas que vieram para o Brasil, estavam em boas condições de saúde.  Em geral as pessoas que imigram costumam ser saudáveis, porque as famílias escolhem os mais fortes, os mais estudados para mandar para outro país, porque essa pessoa terá mais chances de se sair bem.
 
Mas obviamente se qualquer pessoa saudável passar muitas semanas dormindo mal, comendo mal, bebendo uma água que não é potável, dormindo num aglomerado de gente que desconhece, muito ansioso com sua perspectiva de futuro, com receio etc, pode vir a adoecer.  Qualquer pessoa que muda de casa ou de emprego, separa do marido ou casa, passa por um processo de inquietude, tem alteração de sono, alteração de apetite, dores corporais, tudo isso é normal num processo de adaptação porque quando você não sabe o que pode acontecer no seu presente e no seu futuro a ansiedade se intensifica.
 
E foi feita alguma coisa para melhor a relação entre os haitianos e a população local?
 
É sempre um desafio acolher outra cultura, outra etnia, e fazer com essas pessoas se sintam confortáveis em um país que não é o delas de origem.
 
Um grande número de haitianos chegou a Tabatinga ao mesmo tempo e a população local – como é de praxe de todos nós seres humanos – se assustou no primeiro momento. Eles não sabiam de onde vinham aquelas pessoas, não entendiam o que elas falavam, não conheciam seus hábitos e acabaram fantasiando uma série de perspectivas e imagens sobre aquela população. 
 
Chegou-se à conclusão que o esporte poderia ser esse elo, já que tanto brasileiros como haitianos gostam muito de esporte.  MSF fez a doação de uma bola de futebol e uma de vôlei, a equipe do Núcleo de Apoio Integral Saúde da família do município, junto com uma psicóloga, uma assistente social, um fisioterapeuta, organizou jogos com haitianos e a população local. Os cuidados à saúde podem ser oferecidos de diversas formas e a integração de uma população imigrante a uma nova cultura é uma delas.
 
A incorporação dos haitianos pelo SUS sinalizou que era hora de Médicos Sem Fronteiras sair?
 
Sim, o nosso objetivo foi cumprido. Médicos Sem Fronteiras tem um foco, o nosso objetivo é na saúde, se as pessoas estão sendo atendidas no sistema de saúde e estão tendo acesso a medicamentos, a gente cumpriu o nosso papel. O que não quer dizer que abandonamos as pessoas a própria sorte ou que o trabalho acabou, porque ainda há 358 pessoas que chegaram ao Brasil depois da data limite estipulada pelo governo para a legalização dos imigrantes. São pessoas que estavam no caminho quando a portaria [que legalizou os haitianos que chegaram ao Brasil até o dia 13 de janeiro] foi baixada e que continuam em Tabatinga esperando o Ministério da Justiça se posicionar sobre a sua permanência ou não no país.
 
Saindo de Tabatinga você foi para Manaus. O que você encontrou?
 
Encontramos uma série de pessoas que queria ajudar, pessoas dentro da igreja católica, evangélica, centros espíritas, cada um desenvolvia algum tipo de ação ou estratégia de cuidados. Mas percebemos que o governo, tanto municipal como estadual, estava tendo dificuldades de pensar políticas públicas articuladas com esses setores. 
Começamos nossas atividades visitando todos os setores governamentais e não-governamentais que se propunham a prestar um cuidado à população haitiana. Perguntamos qual era o plano de ação de cuidados da saúde para este grupo. 
Com as respostas fizemos um mapeamento das necessidades dos haitianos e das ofertas e percebemos que o que estava faltando de verdade era uma articulação entre esses serviços, além de um plano para a inserção dessa população dentro do Sistema Único de Saúde que fosse compartilhado por todos esses setores e serviços. Chamamos uma reunião com todo mundo, incluindo representantes dos haitianos e, a partir daí, as pessoas iniciaram a articulação de uma rede única. 
Depois disso, levantamos as dificuldades dos trabalhadores do SUS, que tipo de dificuldades eles tinham no atendimento à população haitiana e percebemos a mesma coisa que em Tabatinga:  comunicação. Então fizemos algo parecido com que havíamos feito em Tabatinga. 
 
Mas a estratégia aplicada em uma cidade tão pequena como Tabatinga funcionou em Manaus?
 
Não. A estratégia foi outra, o que o trabalho nas duas cidades tinha em comum era o objetivo de inserir os haitianos no SUS. Manaus é uma cidade maior e muito mais dividida. A gente acredita que em Manaus vivam entre 1.000 e 1.500 haitianos no máximo, mas divididos em 15 diferentes bairros. É mais difícil fazer atividades. Por exemplo, para chamar os haitianos para se inscreverem no SUS usamos um carro de som, com uma música haitiana e falamos em crioulo pelas ruas dos bairros onde ouvimos falar que alguns deles estavam instalados, utilizamos ainda o rádio e a cartazes em crioulo e português, para solicitar ao brasileiros que auxiliassem aos haitianos na procura deste cadastramento.
 
Em Manaus, as pessoas já conseguiram o protocolo do visto e a carteira de trabalho, elas normalmente estão trabalhando ou procurando trabalho, essa situação de ansiedade é muito mais reduzida, porque elas já têm outras perspectivas de vida. 
Então não houve trabalho de saúde mental?
 
Houve sim. Fizemos um trabalho muito bonito com cerca de 15 psicólogos que queriam muito ajudar, mas não sabiam por onde começar. Depois de traçar a estratégia com o gestor, capacitar os trabalhadores da rede pública, levantar as necessidades dos haitianos, uma das estratégias foi montar com essa equipe de psicólogos voluntários uma estratégia de intervenção, atendimento e cuidados, compartilhada com o SUS.
 
Os psicólogos de Manaus estão tendo aulas de crioulo e têm uma tradutora à disposição para os atendimentos individuais.  Sei que tem casos de meninas que foram abusadas sexualmente que foram atendidas em crioulo pelas psicólogas e foram referenciadas para outros estados em crioulo [porque a família mudou de Manaus]. Está sendo um trabalho bem bonito porque está sendo dentro da rede do Sistema Único de Saúde, mas está sendo coordenado por esse grupo de voluntários. Eles até usam o Facebook para trocar experiências.
 
MSF oferecia outros tipos de atendimentos e serviços? 
 
A gente tem hoje também um serviço de promoção de saúde que foi montado por Médicos Sem Fronteiras e que está sendo coordenado pelos Jesuítas e por um grupo de voluntários. Há também um serviço de tradução por telefone que pode ser usado tanto pelos trabalhadores de saúde como pelos haitianos, que podem ligar para ter informações sobre onde procurar assistência médica. A pessoa diz qual é a condição de saúde dela e eles auxiliam na busca pelo serviço mais proxim da pessoa (nos casos das unidades de saúde), serviço que você pode acessar, com o endereço, telefone, horário de atendimento.
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