Cólera: a ladra de água

MSF administra três centros de tratamento para conter o surto da doença em Moçambique

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Existem diversas maneiras de roubar água. Feche a torneira. Bloqueie o acesso a um rio. Drene um poço. Ou, pior ainda: roube a vida fora dele.

Isso é o que a cólera faz. Secretamente, ela envenena até um riacho que parece puro. A cólera se arrasta para dentro de suas vítimas quando elas bebem água ou comem algum alimento que achavam ter limpado. E, uma vez que entra em seus corpos, a cólera continua os saques: ela suga a água, depois a joga para fora, provoca vômitos e diarreias, de forma contínua, sem descanso. Nos casos mais graves da doença, um adulto pode perder até 20 litros de água em apenas um dia. Depois disso, a morte é rápida.

De acordo com estatísticas oficiais, 55 pessoas morreram e mais de 7.400 foram infectadas no atual surto que está arrebatando Moçambique desde o começo de fevereiro. Um terço dos casos passou pelo centro de tratamento de cólera (CTC) da cidade de Tete, uma das três instalações construídas pela organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) e coadministrada pelas autoridades moçambicanas. Embora o número de casos esteja se reduzindo rapidamente em Tete, a cólera está alcançando proporções maiores especialmente na província de Zambézia, na costa oriental oposta, que registrou 1.100 casos nas últimas três semanas, de acordo com dados oficiais.

Um CTC é um lugar que cheira como uma piscina municipal no início da manhã; um lugar onde a ladra de água vem para morrer nas mãos de um exército de limpeza, que usa máscaras para evitar as dores de cabeça provocadas pelo cloro continuamente esfregado nos pisos, camas, roupas, mãos. A cólera pode matar 50% dos casos graves; mas, com tratamento adequado, em que a água suja que a cólera suga para fora do paciente é substituída por líquido de reidratação limpo, a mortalidade cai para 1%.

No começo de março, nos dois primeiros meses da atuação de MSF, mais de 3 mil pessoas foram tratadas e curadas nesse CTC. Para as pessoas em Tete, a vida ou a morte dependem, em parte, do quão rápido elas conseguem chegar no centro uma vez que os sintomas começam a aparecer.

Essa é a história delas.

São oito horas da manhã e David Domingos espera ansiosamente na frente do CTC, junto com cerca de 40 pessoas. Ele tem dormido do lado de fora do centro há duas semanas. De início, seus dois filhos mais velhos estavam sendo tratados ali. No dia em que receberam alta, seu bebê foi admitido. Agora é a sua esposa.

De repente, a multidão se dispersa para abrir caminho para uma caminhonete que trazia um novo grupo de vítimas da cólera. Duas mães saíram do veículo segurando suas filhas, bonequinhas com aspecto de maltratadas que ficaram quase inconscientes com o ataque violento. Elas vieram o mais rápido que puderam, disseram. Mas não há muito o que fazer quando sua filha pequena começa a apresentar sintomas no meio da noite. Rápido, você segura suas crianças firmemente, anda e corre por uma hora ou mais – o tempo que leva para chegar ao centro de saúde mais próximo –, sandálias em passos desesperados pelas ruas enlameadas. E ali você espera, espera, espera, até que um carro seja enviado, e que o leve rumo à cidade de Tete o mais rápido que pode ir pelas ruas esburacadas. Elas vieram o mais rápido que puderam, disseram.

Mauro, de três anos, está em estado grave. As veias em seus membros entraram em colapso – o corpo sabe que quando está sob forte ataque, tem de racionar a pouca vida que ainda flui, para alimentar somente os órgãos vitais. Delicadamente, a enfermeira toca seu crânio, onde o sangue ainda está bombeamento fracamente, à procura de uma maneira de inserir o tratamento intravenoso que irá substituir a água que a cólera drenou de Mauro durante a noite. Serita, sua mãe, veio o mais rápido que pôde, diz ela, mas chegou tarde demais. Uma hora depois de sua chegada, ela é uma mãe sem filhos.

Ainda havia tempo para Midio, de um ano e meio. Uma via intravenosa em seu tornozelo o estabiliza, e seis horas depois, ele está sentado no colo de sua mãe, comendo mingau. Ele está de volta em casa alguns dias depois – mas de volta a uma casa onde ele pegou a doença.

O pequeno Mauro mora no bairro de Samora Machel, um dos assentamentos no meio do caminho entre uma pequena cidade e um grande vilarejo que surgiram recentemente com o boom da mineração local. Dezenas de milhares de pessoas originais de outras regiões de Moçambique ou dos países vizinhos Malauí e Zimbábue foram para lá, em busca de emprego, mas os serviços básicos eram muito precários. Como a maioria das casas aqui não têm latrinas, avistamos um casal de crianças agachadas no mato perto do rio. “Fecalismo”, eles chamam em Moçambique, ou defecação a céu aberto, a maneira perfeita de a cólera se propagar. Há banheiros públicos no topo de um pequeno morro, mas o tubo grande que o conecta ao tanque séptico tem um buraco do tamanho de um punho. Vai precisar apenas de um pouco de chuva para os resíduos serem levados 30 metros abaixo e para a cólera rastejar para dentro da água que sai da torneira comum. Em Moçambique, apenas 37% da população rural tem acesso a fontes de água melhoradas.

A cólera é vista como uma doença vergonhosa, porque é transmitida por meio de fezes. Ela prevalece em lugares onde muito pouco tem sido feito para proteger a pureza das fontes de água, e pode se espalhar de forma imperceptível: embora os casos estejam começando a diminuir na cidade de Tete, estão aumentando as ocorrências na região rural, ao longo do tranquilo Zambéze e sua rede de rios, onde muitos moradores de vilarejos coletam a água que bebem. “Mas o rio é o culpado?”, pergunta Renato Souza, coordenador de emergência de MSF na resposta à cólera.

O grande vilarejo de Dégué, a 45 minutos do aglomerado urbano da cidade de Tete, não parece um lugar sujo à primeira vista. Sua mistura de casas de tijolo, barro e madeira é bem arrumada, sem lixo ao seu redor. Ao meio-dia, a maioria dos homens estão trabalhando em suas plantações de milho, mas uma multidão de crianças e mulheres se reúnem rapidamente na sombra de uma árvore baobá em resposta à conselheira de MSF que fala no megafone – Gabriela Fernando, uma das 150 profissionais da organização e do Ministério da Saúde, encarregada de explicar como evitar a doença. “Povo de Dégué! Protejam-se da cólera!”

As pessoas ouvem Gabriela atentamente e fazem perguntas. Elas sabem muito bem que a ladra de água invisível está entre elas: na última semana, cinco pessoas, todas crianças, foram atingidas pela doença. Uma de oito anos morreu.

A vida é difícil em Dégué, e a cólera não a torna mais fácil.

Francisco Saene, de 77 anos, anda com cautela para fora de sua casa. Ele está fraco, ainda se recuperando da malária, mas ansioso para falar. Duas vítimas de cólera vivam a alguns metros dali: em uma casa de barro 30 metros ao norte e em uma pequena de tijolo 50 metros ao sul. Isso o assusta? “Eu não posso me dar ao luxo de ter medo”, diz ele. “Se eu ficar doente, não haverá ninguém para cuidar de mim. Eu não posso perder a cabeça.” Essa foi a primeira vez que ele ouviu falar sobre cólera? “Oh, não”, disse ele. “A cólera é como o vento: às vezes ela sopra para esse lado, às vezes sopra para o outro. Você nunca sabe quando ela virá.”

A fonte do surto de cólera aqui parece óbvia: todo mundo bebe da mesma bomba de água. Alguns dias depois, MSF envia um especialista em água para matar a cólera com cloro, colocar vida de volta na fonte de água do bairro. Custa cerca de R$ 100,00 devolver a vida à água.

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