Afeganistão: desnutrição na província de Helmand

Enfermeiro fala sobre sua experiência em região cujo acesso a cuidados de saúde primária é extremamente limitado

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Sam Templeman é um enfermeiro pediátrico australiano. Ele trabalhou na província de Helmand, no sul do Afeganistão, de dezembro de 2014 a setembro de 2015. Na capital provincial, Lashkar Gah, a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) presta suporte ao hospital público Boost, do Ministério da Saúde. Abaixo, Sam compartilha alguns dos momentos do trabalho emocionante realizado com MSF.

Quais era as suas tarefas?

Minha atribuição era a de supervisionar a ala pediátrica em um centro de nutrição terapêutico – ala de desnutrição, em outras palavras –, trabalhando em conjunto com o chefe de departamento Afeganistão.

O trabalho envolvia cuidados diretos com o paciente, treinamento na ala pediátrica e em sala de aula, além de tarefas que diziam respeito mais à gestão, como estruturar as escalas, administrar o estoque de suprimentos, atividades de recursos humanos, etc. Eu gostei de ocupar um cargo com essa variedade de atividades.

Qual era o foco de sua participação nesse projeto de MSF?

O meu objetivo era melhorar a qualidade dos cuidados que nossos pacientes estão recebendo. Conseguimos atingir esse objetivo por meio do treinamento e supervisão do pessoal, da renovação dos trabalhos, garantindo que dispomos dos recursos e equipamentos adequados, e também atualizando políticas e procedimentos quando necessário.

O hospital Boost é bastante grande e é um projeto significativo para os padrões de MSF. Os enfermeiros internacionais e médicos prestam suporte à equipe nacional na manutenção de diferentes departamentos – tudo, de cirurgia a cuidados intensivos e alas de desnutrição. MSF conta com cerca de 700 profissionais nacionais no hospital.

Na ala de pediatria geral e no centro de nutrição terapêutica intensivo todo o pessoal de enfermaria são mulheres, além das assistentes de saúde. Eu realmente gostei de trabalhar com a equipe afegã. Sempre tive ciência do raro privilégio de trabalhar com mulheres afegãs e aprender com elas.

De início, eu estava nervoso, preocupado com falar ou fazer coisas erradas por conta da cultura e das tradições serem tão diferentes. Mas eu fui rapidamente surpreendido com as reações delas. Uma das enfermeiras da ala pediátrica geral adora críquete. Depois da Copa do Mundo, eu vim a saber disso porque a Austrália venceu, e eu tive que comprar kebabs para todo mundo naquele dia. Meu argumento de que, uma vez que meu país havia vencido, elas é que deveriam comprar kebabs para mim, não foi bem-recebido!

Quais foram os seus principais desafios médicos e humanitários?

Por onde começar? A oferta de cuidados de saúde gratuitos em Helmand é muito restrita. A maioria das pessoas vão a clínicas ou farmácias onde pagam por tratamento.

Frequentemente, falta treinamento para os profissionais de saúde e a qualidade dos medicamentos disponíveis gratuitamente também é duvidosa. Em geral, as pessoas gastam o pouco dinheiro que têm com cuidados de saúde de má qualidade. Presenciamos os efeitos diretos da falta de cuidados de saúde primária no hospital, com muitas pessoas apresentando condições que não precisariam de hospitalização. A ala de desnutrição traz à tona muitas das questões da província. A desnutrição não é causada simplesmente pela falta de alimentos. Qualquer pessoa que tenha estado doente anteriormente pode perceber que, geralmente, perde-se o apetite e um pouco de peso simultaneamente. Mas para uma criança nesse contexto, sem acesso a bons cuidados de saúde primária, boa nutrição e saneamento adequado, isso a coloca em maior risco de ficar doente novamente. Na medida em que esse ciclo se repete, a criança acaba perdendo cada vez mais peso, até que se torne gravemente desnutrida.

Outra questão era a fácil disponibilidade de antibióticos. Não raro, eles são prescritos de forma inapropriada ou comprados sem prescrição, o que contribui para a resistência a antibióticos. Na medida em que esses antibióticos se tornam cada vez menos efetivos, os resultados em termos de saúde vão apenas piorar.

Você se lembra de algumas histórias de pacientes?

Lembro-me de uma mãe na ala de desnutrição cujo filho tinha kwashiorkor, tipo de desnutrição em que o corpo da criança incha. Essas crianças correm um risco maior de morrer no hospital. Começamos a tratá-lo com o procedimento padrão e esperávamos que o inchaço fosse reduzido. Mas há tanto que ainda não sabemos sobre desnutrição, tanta pesquisa ainda a ser feita…

Nós tentamos outros diagnósticos possíveis, checamos sua urina e sangue e fizemos uma ultrassonografia de seu peito, buscando sintomas de tuberculose (TB). Mas nada parecia se adequar e não pudemos desvendar por que o corpo dele não respondia. Mas não é por isso que me lembro dele. Lembro-me dele por conta de sua mãe. Ela era tão jovem quanto muitas outras, e chorou por ele. Ela chorava e chorava, e não conseguia parar porque estava muito preocupada. Ninguém sabia o que fazer. Nós estávamos tão desabituados a ter contato com tanta emoção que não sabíamos o que fazer por ela.

Algumas das outras mães tentaram confortá-la. Alguns de nossos profissionais tentaram acalmá-la. Nos primeiros dias, eu me sentei com ela para explicar o que estava acontecendo e que esperávamos que ele melhorasse após alguns dias de tratamento. Passados alguns dias, eu tive de dizer a ela que algumas crianças demorar mais a responder ao tratamento do que outras. Depois, disse que estávamos fazendo alguns testes para procurar outras causas. E, finalmente, eu não sabia o que dizer a ela. Depois de cerca de duas semanas, soube que ela havia ido embora e levado a criança ao Paquistão, na esperança de conseguir um tratamento melhor. Não estou certo de que ele sobreviveu à viagem.

Qual foi o dia mais difícil para você?

Era comum ouvirmos confrontos entre grupos armados e as forças do governo. Nesse dia, ficamos sabendo que havia ocorrido uma explosão não longe do hospital. Uma das enfermeiras recebeu um telefonema de sua irmã dizendo a ela que a casa delas havia sido destruída. Felizmente, ninguém havia se machucado. Ela me perguntou se poderia sair mais cedo do trabalho para ver o estrago e salvar o que pudesse.

Ela é uma das enfermeiras mais fortes e, normalmente, segue com o trabalho sem reclamar. A maioria das pessoas estaria em lágrimas depois de ter sua casa destruída, mas ela conseguiu contê-las quando voltou. Mais tarde, um de seus pacientes faleceu. Saleha* não sucumbiu. Ao final de seu turno, ela vestiu sua burka, pegou sua mala e voltou para onde sua casa costumava estar. Em seu próximo turno, ela apareceu para trabalhar, e trabalhou duro, como sempre fez.

Há alguma outra história que você queira compartilhar?

Há muitas, mas algumas me vêm à memória primeiro. A equipe internacional não tinha permissão para sair devido às rígidas regras de segurança. Nós íamos de carro de casa ao hospital, e do hospital para casa, passando pelo bazar, e observávamos as pessoas fazendo suas coisas. Todos nós queríamos poder sair e andar pelo local, sentar e tomar um chá. Lembro-me, próximo do final de minha participação no projeto, que uma das enfermeiras me perguntou se eu já havia estado no bazar. Eu vi suas colegas balançando as cabeças e fazendo um gesto – algo como “apenas A para B”, e então elas começaram a rir.

Enfermeira: “Verdade? Você nunca foi a nenhum outro lugar a não ser o hospital ou o complexo onde mora? Em nove meses?”

Sam – “Uma vez, fui a uma reunião. Não tenho autorização para sair”

A enfermeira não conseguia parar de rir.

Eu me sentei ali, sendo motivo de risada dessa enfermeira de 19 anos por não ter permissão para sair. Disso não gostei, mas, por outro lado, meus colegas internacionais parecem gostar bastante dessa história.

*O nome foi alterado.

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