Uma história de sobrevivência

Médica brasileira fala sobre seu contato com um jovem infectado com HIV e sua batalha para continuar vivendo com o vírus

Uma história de sobrevivência

Ele chegou atrasado à sessão de aconselhamento. Andava com dificuldade. O jovem me chamou atenção pela magreza, estava realmente muito debilitado. Logo reclamou do ventilador, alegou estar com “sinusite” e pediu para desligar. Parecia distante e alheio às explicações do nosso conselheiro sobre a importância do tratamento antirretroviral (Tarv).

O conselheiro sabia seu nome, era Jorge. Sentindo que ele não estava absorvendo nada daquelas orientações, achou melhor ele ir logo para a consulta clínica. Fiquei sabendo que o jovem participava de um grupo de adolescentes soropositivos, mas que não se reúnem. São jovens que tinham contraído a doença de sua mãe por transmissão vertical – foram infectados durante a gestação. São chamados de “geração esperança”. Sobreviventes das primeiras crianças que contraíram a doença durante a gestação, o parto ou amamentação. Há 20 anos, os programas de prevenção estavam apenas começando no país e os medicamentos eram oferecidos em poucos centros de saúde. Jorge tem 19 anos. É a pessoa mais velha que atendi que tinha contraído HIV desta maneira aqui em Moçambique. Ele diz ter iniciado o Tarv na infância, mas há um ano tinha parado de tomar os antirretrovirais. Falava com dificuldade. Oferecemos água e ele disse que mora com o irmão e que seus pais morreram. Estava sozinho na consulta. Perguntei se quando pequeno sabia por que tomava o medicamento, e ele disse que não, que só entendeu que tinha HIV já adolescente.

Não conversamos mais, ele estava muito fraco e desidratado e precisava de uma hidratação venosa. Fiquei sem saber por que ele tinha parado de tomar seus medicamentos. Talvez no fundo eu soubesse. Lembrei de meus filhos, agora nessa idade, e de como eu era na adolescência, época de contestar e fazer diferente.

Marcamos seu retorno para a próxima semana e pedimos para que ele não viesse sozinho. Ele aceitou trazer sua irmã. A presença do confidente, pessoa escolhida pela pessoa para ajudar no seu tratamento, é fundamental para auxiliar a tomar os medicamentos para o resto de sua vida. Jorge diz com voz fraca que tem diarreia há alguns dias, que não consegue comer e se sente muito fraco. Caminho com ele a passos lentos pelo centro de saúde da Ponta Gêa até o Banco de Socorros e aproveito para fazer o exame de contagem das células CD4* e outras análises. Não consigo esquecer a tristeza do seu olhar. Tento ter esperança, mas meu raciocínio clínico me diz que suas chances de sobreviver, infelizmente, são poucas. Jorge está em tratamento há muitos anos e não consegue manter aderência ao tratamento. A chance de ele agora estar infectado com vírus HIV resistente é alta. Talvez não tenha tempo e chance de começar uma segunda linha de tratemento. Pergunto se não quer ficar internado, para se hidratar por mais tempo e tratar a diarreia, mas ele não aceita. Diz que tem exames no dia seguinte, que está quase terminando o ensino secundário.

Admiro seu esforço, e olho para ele com emoção. É um sobrevivente. Há vinte anos não havia estatísticas confiáveis, pois os dados eram coletados apenas em centros de referência para o HIV. Mas, em 1998, época em que Jorge tinha cerca de dois anos, aqui, na região central do país, das cerca de 25 mil crianças monitoradas, 15 mil faleceram antes de completar 15 anos, o que representa mais de 60% da amostragem.

Volto no fim do dia ao Banco de Socorros para ver como ele estava, mas Jorge já tinha ido embora. Na maca onde estava deitado, o lençol tinha um pouco de sangue, que deve ter  caído na hora de puncionar sua veia. Era o sangue soropositivo da primeira geração de crianças vivendo com HIV  que foram contaminadas no início da pandemia. Fico olhando para aquele sangue por alguns segundos, tentando ter esperança. Respiro fundo e penso que daqui a uma semana ele vai voltar melhor, com a sua irmã, e vamos reiniciar o tratamento. Jorge vai continuar a viver e ter planos, vai terminar seus estudos, ser um jovem saudável, ter o CD4 alto e a carga viral** indetectável para não contaminar sua companheira e seus filhos. Só assim teremos uma geração livre do HIV em Moçambique. Enfim, vou embora emocionada, mas, agora, com esperança.

*CD4 são células que controlam a resposta imunológica contra infecções. A contagem de CD4 é um indicador do nível de imunidade de uma pessoa com HIV e determina se o tratamento antirretroviral (ARV) deve ser iniciado. A contagem de CD4 de um indivíduo saudável varia de 800 a 1.200.

**Enquanto nós medimos o nível de células CD4 de uma pessoa para avaliar seu sistema imunológico e determinar quando a pessoa deveria iniciar o tratamento, os exames de carga viral nos mostram se o vírus ainda está se replicando, que é um sinal de que a pessoa pode estar tendo problemas para aderir ao tratamento. Quando o vírus está bem suprimido e o tratamento está evoluindo com força total, a carga viral da pessoa é considerada ‘indetectável’. Nesse caso, torna-se muito menos provável a transmissão do vírus pelo paciente.
 

Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print